Por Ana Maria Chiarini
Novembro/2024
⠀⠀⠀O volume, publicado pela Bertrand Brasil em 2009, reúne dois contos de Roberto Saviano, autor famoso por Gomorra, enorme sucesso editorial da Mondadori em 2006, lançado no Brasil pela mesma Bertrand Brasil em 2008. Diante das referências a essas datas, vale a pena logo salientar que Saviano, nascido em Nápoles, em 1979, ou seja, antes dos 30 anos de idade, já tinha vendido milhões de exemplares em todo o mundo e vivia isolado, sob escolta – como, aliás, vive até hoje –, por ter narrado a rede de atividades da Camorra, a máfia napolitana, com muita vivacidade e rigor jornalístico.
⠀⠀⠀Em 2007, ainda na efervescência desse grande caso editorial, Il contrario della morte. Ritorno da Kabul é publicado na coleção Corti di carta, do jornal Corriere della Sera, que se propunha a apresentar narrativas breves inéditas de grandes escritores italianos ao preço de um euro, embora, à época, pudéssemos julgar bastante discutível a rápida ascensão do jovem autor à esfera dos grandes escritores italianos. No Brasil, animada com os primeiros lugares de Gomorra, por meses, nas listas dos mais vendidos, a Bertrand compra os direitos desse conto, ao qual acrescenta outro, L’anello, e compõe um único volume.
⠀⠀⠀É esse, em poucas linhas, o início da história editorial da obra de Saviano que traduzi. O foco deste verbete é exatamente o peso dessa história sobre a forma como a tradução foi publicada, tanto no que diz respeito ao peritexto – como ensina Genette (2009), a dimensão que se situa em torno do texto, mas no espaço do mesmo volume –, quanto no que diz respeito ao texto principal, neste caso específico, depois da revisão da editora, a responsável de fato pelo controle sobre toda a rede de produção e a materialização do objeto livro.
⠀⠀⠀A capa traz, como elemento visual em destaque, a foto de um bairro antigo e superpopuloso de Nápoles, o nome do autor, seguido da advertência “autor do sucesso Gomorra”, o título “O contrário da morte” e o subtítulo, “cenas da vida napolitana”. Enquanto na capa o título é vermelho, na folha de rosto aparece em fonte escura de traço largo, com o miolo das letras na forma de pequenas cruzes, sugerindo orifícios de balas. Se não prestarmos atenção às letras miúdas da página da ficha catalográfica, é só na página 7 que percebemos que o subtítulo da primeira narrativa – O contrário da morte. Retorno de Cabul – não foi aproveitado como subtítulo do volume, tendo sido dispensada a menção a Cabul, capital do Afeganistão, em favor da referência às “cenas da vida napolitana”, muito mais significativa, e vendável, para o público brasileiro leitor de Saviano. Aqui, no entanto, é importante observar que essa estratégia comercial, que quer dialogar tanto com nosso imaginário coletivo envolvendo a cidade italiana e a máfia, quanto com o best seller Gomorra, não tem um apoio sólido nas temáticas que lemos nas duas narrativas. Na primeira delas, que nomeia o volume, nem Nápoles nem a Camorra estão presentes. Na segunda, O anel, a Camorra aparece, mas Nápoles não, isto é, ao menos não no texto em italiano recebido para o trabalho da tradução; em outras palavras, é só depois da revisão da editora que a cidade entra na trama.
⠀⠀⠀O cenário de O contrário da morte é uma cidadezinha da qual desconhecemos o nome, situada na região natal do escritor, a Campânia. É através do sofrimento da jovem Maria que entramos em contato com um fenômeno apresentado como usual para as pessoas do lugar, ou seja, a partida dos jovens para as guerras do mundo. As missões das quais participaram os soldados italianos, sobretudo meridionais, nas últimas décadas, parecem concentrar as atenções e ânsias de todos no paesino sem nome, sem horizontes e sem oportunidades de emprego. Enquanto os rapazes enxergam a participação no conflito da vez – Somália, Kosovo, Afeganistão ou Iraque – como a única e concreta possibilidade para entrar na vida adulta, já que o trabalho ali não existe, as meninas, como Maria, comportam-se como Penélopes modernas que tecem conversas virtuais infindáveis com os namorados no front. As notícias e imagens da guerra são vividas por familiares e amigos com muito mais intensidade do que o cotidiano pequeno e entediante do paese, onde as mulheres se vestem de preto, em um luto que se alarga e se eterniza, dada a sucessão de mortes, e aprisiona todos os habitantes numa malha solidária e trágica.
⠀⠀⠀A ambientação da segunda narrativa, O anel, não é muito diferente. Um outro povoado sem nome retorna ao centro da cena nas lembranças do narrador. O relato se inicia com a tentativa do jovem protagonista de esconder marcas de práticas sociais violentas e das brigas dos clãs mafiosos durante a visita de uma amiga vinda do Norte da Itália, totalmente estranha à vida do lugar. Em um segundo momento da narrativa, um episódio brutal envolvendo quatro rapazes trabalhadores vem à tona junto com a conclusão do narrador de que na "terra da culpa" ninguém sai ileso nem é inocente.
⠀⠀⠀Vale dizer que tanto em O contrário da morte quanto em O anel todas as diversas ocorrências de "paese" e "paesino", traduzidas como "cidadezinha" ou "povoado", foram revisadas ora como "cidade", referência óbvia a Nápoles, ora como "país", nação. Talvez essa decisão editorial não tivesse maiores implicações se o espaço do "paese", da província italiana, em seu imobilismo e asfixia, não fosse tão central nos dois contos.
⠀⠀⠀Sabe-se que a autoria de uma obra traz uma série de representações históricas, culturais e literárias atreladas ao nome. Roberto Saviano, naquele momento, era sinônimo de combate à máfia napolitana e, portanto, era assim que devia ser orientada a circulação de sua produção. Sabe-se também que os paratextos têm um papel fundamental de propor articulações de sentido. Aqui, especificamente a capa e o subtítulo, com o auxílio de uma intervenção no texto traduzido, cumpriram a poderosa tarefa de articular o sentido esperado, ou seja, aquele que podia fazer eco ao sucesso de Gomorra, embora das duas narrativas, na minha leitura em italiano, se depreendessem outras questões muito mais urgentes, como a falta de perspectivas da juventude na província italiana e a ânsia dessa juventude de se lançar no mundo.
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2009.
SAVIANO, Roberto. O contrário da morte: Cenas de vida napolitana. Translation from Ana Maria Chiarini. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2009. ISBN: 9788528614060.