Por Aurora Fornoni Bernardini
Outubro/2024
⠀⠀⠀Os Malavoglia (1881) é o romance considerado a obra-prima do escritor Giovanni Verga (1840-1922), natural de Vizzini (Sicília) e principal representante do “verismo”, a vertente italiana próxima do naturalismo de um Zola à qual também pertenceram Luigi Pirandello, Federico De Roberto e Luigi Capuana. Nele o autor estabeleceu não apenas os princípios do “verismo” (uma análise objetiva da realidade baseada no naturalismo e a constatação das mudanças sociais decorrentes das transformações históricas na Itália da época, segundo a perspectiva dos “vencidos”), mas realizou brilhantemente, numa escritura que utiliza o discurso indireto livre e a narração em terceira pessoa, a proposta de superar o desacordo entre língua falada e escrita valendo-se de vocábulos, expressões e ditos dialetais (no caso, da comunidade de pescadores de Aci-Trezza, mas herança de gerações que se sucederam), o que determina o tom do romance.
⠀⠀⠀Nele, conforme notou o crítico Antonio Candido no brilhante ensaio “O Mundo provérbio” (que solicitamos ao editor que fosse incluído no volume traduzido), “o tempo flui pastoso e as etapas não se diferenciam, fazendo os homens parecerem os mesmos, uma geração depois de outra, encasulados na fixidez dos costumes.”
⠀⠀⠀Como comunicar, na tradução, a circularidade dessa estrutura, o tempo não mais histórico, mas geográfico, como o define Fernand Braudel?
A solução nos foi sugerida, primeiramente, pela diferença de estilo entre a introdução de Giovanni Verga ao romance, escrita num italiano erudito, com influência toscana visível no léxico (banhado no Arno, como dizia Alessandro Manzoni) – e resultado de sua estada em Milão, onde frequentou os salões e os círculos literários mais requintados da época ¬ , e o romance em si, que contrasta, imediatamente, pela linguagem não apenas coloquial e regionalista (o siciliano popular e o literário), mas – conforme notou argutamente Antonio Candido – que vem impregnada de ditos e provérbios.
⠀⠀⠀Impregnada a tal ponto – e aqui está a grande novidade – que não só é reportada nas falas das personagens, mas contamina, inclusive, o discurso em terceira pessoa do próprio narrador, não havendo, portanto, diferença de tom entre o discurso direto e o indireto.
⠀⠀⠀A história dos Malavoglia é a de uma família de pescadores que vive perto de Catania, na casa “da Nespereira”, orgulho do patriarca Padron ‘Ntoni. Esse, visando um lucro suplementar para a família, compra de um usurário certa quantidade de tremoços já passados de maduros, que o filho Bastianazzo deveria revender aos tripulantes de um navio ancorado na região. Há um naufrágio e tudo se perde. O filho morre, a dívida a ser paga implica a perda da casa, a unidade da família se desfaz. A desgraça continua: três netos abandonam a ilha, o velho e a nora viúva morrem após tentarem recuperar ao menos a casa. Quem o consegue é o caçula ‘Ntoni que resolve, porém, ir embora, no fim, “com seu cesto embaixo do braço”. Abertura e fechamento são, portanto, as dominantes que marcam o ritmo da obra, e indeterminação e parcimônia – dois termos utilizados por Antonio Candido – são os traços distintivos que envolvem a ambiência da aldeia, seus habitantes, seus usos e costumes e que tentamos manter na tradução.
⠀⠀⠀Alguns procedimentos foram importantes: a repetição de termos e locuções, a criação de “ditos” em português que representassem a sabedoria petrificada nos provérbios sicilianos (que ironicamente, ou mesmo tragicamente, a realidade contradiz), a amarração entre a fala das personagens e a do narrador, o uso de lugares-comuns e frases-feitas implicando tradição, permanência, monotonia, a reiteração de caracterizações como fórmulas, a manutenção dos nomes próprios no original; tudo isso visando reforçar o tom que determina o estilo do romance em que, citando novamente Antonio Candido, “a invenção estilística funciona como nivelamento social, de tal modo que, e mesmo sem intenção clara de sugeri-la, o romancista efetua uma espécie de vasta igualitarização.”
⠀⠀⠀A esse respeito, vale a pena recorrer a Alberto Asor Rosa que, no volume Il caso Verga, discute a cisão entre ohomem e o artista valendo-se da que ele chama “ teoria do não obstante”. Conforme é sabido, Verga, filho de uma família da antiga nobreza siciliana, foi um aristocrata ou, no dizer de Asor Rosa, “um rentier de gostos provinciais [...], de horizontes bastante limitados e pouco disponível para um colóquio sobre as grandes questões da cultura contemporânea.
⠀⠀⠀Pois bem, é, não obstante isso tudo, que Verga se torna, ao menos em alguns casos, um grande escritor”. Um dos casos é justamente o de Os Malavoglia (que representa a luta pela sobrevivência) que, juntamente com Mastro-don Gesualdo (representando a tentativa de escalar a hierarquia social) e o inacabado A duquesa de Leyra (protótipo da ambição aristocrática), se insere naquilo que Verga chamou de “o ciclo dos vencidos”, que deveria incluir mais duas obras não escritas, uma representando a ambição política (L’ Onorevole Scipioni) e o outro a ambição artística (L’uomo di lusso). Embora homem de tendência conservadora, Verga, como artista, nesse ciclo e em outros trabalhos, demonstra, indiscutivelmente, uma grande atenção para com figuras do povo e uma preocupação de caráter social. Por isso, e por outros motivos, recebeu ele, em outubro de 1920, a nomeação de senador vitalício, dois anos antes de morrer e um ano antes da constituição do Partido Nacional Fascista e sua entrada no parlamento italiano.
BRAUDEL, Fernand. "História e Ciências Sociais: a longa duração." In: Revista da História (DH-FFLC), v. 30, n. 62, 1965.
CANDIDO, Antonio. “O mundo provérbio” In: VERGA, Giovanni. Os Malavoglia. Trad. Aurora F. Bernardini; Homero F. Andrade. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
ROSA, Asor. Il caso Verga. Palermo: Palumbo Editore. 1973, pp.166-168.
VERGA, Giovanni. Os Malavoglia. Trad. Aurora F. Bernardini; Homero F. Andrade.São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
VERGA, Giovanni. Mastro-don Gesualdo. Roma: Biblioteca Economica Newton, 1994.
VERGA, Giovanni. Os Malavoglia. Translation from Aurora Fornoni Bernardini; Homero Freitas de Andrade. 1. ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002. ISBN: 8574800570.
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