⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀Por Maria Gloria Cusumano Mazzi
Novembro/2024
⠀⠀⠀Leonardo SCIASCIA nasceu em 1921, numa cidadezinha chamada Racalmuto, na província de Agrigento, na Sicília, Itália, onde transcorreu toda a vida, e morreu em 1989, em Palermo, capital da ilha. Apontado como um dos maiores escritores italianos do século XX, Sciascia atuou em várias frentes. Foi professor, jornalista, deputado, ensaísta e ficcionista, mantendo sempre uma postura crítica de empenho moral e civil diante dos acontecimentos, em defesa da razão contra todo e qualquer retorno irracional e mistificador.
⠀⠀⠀Seu primeiro livro foi publicado em 1956, quando entra em crise o neorrealismo (movimento artístico, associado a uma arte ideológica de esquerda) e o último romance saiu no ano de sua morte, totalizando mais de 40 volumes. Conforme o próprio autor declarou, o conjunto de sua obra se resume num único livro sobre a Sicília, a do passado e do presente, em que a razão humana tem sido continuamente derrotada, provocando injustiças e falta de liberdade de expressão, política, econômica e religiosa.
⠀⠀⠀A realidade siciliana é vista como o espaço da não-razão em oposição a Paris, a Paris mítica do século XVIII, que para ele representa o espaço da razão e da liberdade. De fato, o século XVIII foi dominado pelo Iluminismo (movimento intelectual europeu iniciado no final do séc. XVII, que se estendeu até o séc. XVIII, que defendia a razão em detrimento da fé como forma de entender o mundo), cujas ideais permearam a vida e a obra de Sciascia, o mais iluminista dos escritores do pós-guerra italiano.
⠀⠀⠀Sciascia é leitor assíduo e admirador dos autores franceses como Diderot, D’Alembert, Montesquieu, Stendhal, Victor Hugo e, principalmente, de François-Marie Arouet, conhecido pelo pseudônimo literário de Voltaire (1694-1978), um dos principais pensadores do Iluminismo, considerado pelo autor siciliano como um modelo de escritor e seu conto Candide, ou l’Optimisme,de 1789, a obra literária mais importante do século XVIII.
⠀⠀⠀A evidente influência do pensamento desse grande mestre sobre os posicionamentos públicos de Sciascia - a respeito de várias questões - lhe rendeu por parte da crítica italiana o aposto de ‘o Voltaire da Sicília’.
⠀⠀⠀Em 1977, Sciascia parte do admirado conto filosófico (narrativa tradicional e de ensinamento que pode ser usada para ilustrar questões morais e filosóficas) de Voltaire para recriar o seu Candido ovvero un sogno fatto in Sicilia, que traduzimos como Candido ou uma história sonhada na Sicília.
⠀⠀⠀Candido é, pois, a reescritura paródica de Candide, paródia entendida também como canto paralelo (Campos, H. 1967) e não só como ‘contra-canto’, uma vez que em Sciascia ela se constitui em homenagem a Voltaire, embora assinale uma diferença irônica e crítica ao texto parodiado. Por ser um discurso literário, uma ficção da ficção, a paródia questiona, denuncia, mas nunca apresenta respostas. O interesse do narrador é provocar a reflexão no leitor através da ironia e do humor, estratégias discursivas fundamentais que lhe permitem interpretar e avaliar os fatos.
⠀⠀⠀Em síntese, o conto de Sciascia, composto de vinte e seis capítulos, narra em 3ª pessoa a trajetória do personagem Candido Munafó, a partir de seu nascimento na Sicília, numa típica família da média burguesia italiana, em julho de 1943 - no momento em que as tropas americanas ocuparam a ilha, derrubando o fascismo e pondo fim à segunda grande guerra - e segue as várias etapas de seu desenvolvimento até completar 34 anos.
⠀⠀⠀A narrativa linear discorre sobre a formação do protagonista com seu preceptor, o vigário dom Antonio, através de diálogos com profundas reflexões e segue contando sua infância tranquila, apesar do suicídio do pai, e do abandono da mãe; narra seus relacionamentos amorosos com Paola, a nova empregada e amante do avô e depois com a prima Francesca; discorre sobre sua experiência política (em relação ao fascismo do avô que se torna democrata-cristão e à hipocrisia do partido comunista italiano) e religiosa (com a carolice da antiga governanta Concetta e a própria peregrinação que ele faz a Lourdes com o vigário). Tudo isso em meio às mudanças político-sociais da Itália (nascimento da República Italiana, as primeiras eleições do país). Mudanças que estão acontecendo por toda a Europa e são comentadas por Candido e Francesca que, ao viajar pelo mundo, registram contradições históricas por onde passam. A narrativa se encerra em 1977, em Paris, quando Candido chega à maturidade e decide deixar a Sicília para morar com sua Francesca na França de Voltaire.
⠀⠀⠀O narrador de Candido assume a posição de autoridade incontestável em relação à história, conhece tudo e todos, manipula o discurso de forma desenvolta, comenta os fatos - às vezes entre parênteses – colocando-se do ponto de vista do leitor, remetendo-o ora para o futuro, ora para o passado ou para o presente, criando um efeito de distanciamento irônico que acaba chamando a atenção para o momento histórico que serve de fundo para a narrativa. A história figura no texto literário de Sciascia sem alterar sua especificidade, isto é, sem perder seu estatuto ficcional. História e literatura aparecem sempre dialeticamente integradas na sua narrativa. O próprio escritor declara seu interesse pela história como a razão que o leva a escrever.
⠀⠀⠀Ao transformar a História em narrativa ficcional, o escritor tem a possibilidade de escapar à engrenagem da História, que é sempre trágica. Só a arte é capaz de apreender os sonhos dos homens. E Candido é, de fato, uma história sonhada na Sicília por Leonardo Sciascia.
⠀⠀⠀Quanto à tradução devo dizer que enfrentei as dificuldades inerentes à própria atividade de transpor para outra língua o que o texto disse e/ou quis dizer na linguagem original, sem ‘trair’ o autor. Certamente ajudou o fato de eu ter nascido na mesma província de Sciascia, Agrigento, e conhecer o ambiente, os personagens, aquele modo irônico de comentar cada situação, tudo bastante familiar para mim.
⠀⠀⠀Quanto à publicação, ela só foi possível graças ao convite da Berlendis & Vertecchia editores para integrar a ‘Coleção Letras Italianas’, que tem contribuído para divulgar a literatura italiana no Brasil através de um trabalho sério e impecável neste sentido.
CAMPOS, H. Introdução. In: Oswald de Andrade: trechos escolhidos. Rio: Agir, 1967
SCIASCIA, L. Candido ovvero Un sogno fatto in Sicilia. Milano: Adelphi Edizioni, 1990
VOLTAIRE, Candide ou l’Optimisme. Paris: Bordas, 1970
VOLTAIRE, Candido ou O Otimismo. In: Contos de Voltaire. Tradução de Mário Quintana, São Paulo: Círculo do Livro, 1995
SCIASCIA, Leonardo. Candido, ou uma história sonhada na Sicília. Tradução de Maria Gloria Cusumano Mazzi. São Paulo, SP: Berlendis e Vertecchia, 2014.