Por Sergio Romanelli
Novembro/2024
⠀⠀⠀Conheci Rina Sara Virgillito em 1988, veio na escola onde eu estudava em Bergamo para ministrar um seminário sobre a tradução dos sonetos de Shakespeare que ela tinha acabado de publicar na Itália. Pela primeira vez, via ao vivo uma poeta e uma tradutora, até então só tinha ouvido, lido, imaginado sobre eles e elas. Fiquei raptado a manhã inteira enquanto ela falava com entusiasmo de Amor e Poesia, métrica, rimas, amantes e amores platônicos, a Dark Lady e o The Fair Young Man … me senti desenhado em cada palavra que ela traçava sentada na carteira da sala do Instituto Quarenghi, suas palavras eram entidades vivas, uma vez pronunciadas, começavam a desenhar cenas na minha imaginação, enxergava tudo e me enxerguei pela primeira vez como poeta e tradutor, ela contava tudo aquilo de uma forma tão espontânea e fascinante. Para mim, esse encontro foi uma revelação, naquele dia entendi que comunicar poesia e tradução, além de uma vocação, poderia ser uma profissão. Nunca teria imaginado, então, que praticamente 30 anos depois eu realizaria a primeira tradução da poesia dela para uma língua estrangeira e menos ainda poderia cogitar que seria em português e no Brasil. O "nada é por acaso" que a ouvi várias vezes falar naqueles encontros poéticos (houve outro mais adiante sobre a poesia de Montale), não tinha sido um acaso. De fato, a mim coube, quando da sua morte em 1996, a catalogação, na sua casa, de toda sua biblioteca. Sozinho, no seu apartamento entupido de livros, na parte alta medieval da cidade de Bergamo, descobri, ao folhear aqueles livros, que ela tinha nascido no dia 29 de setembro, mesmo dia que eu… e que, ainda segundo seus amigos, nunca ninguém tinha entrado naquela casa, somente eu naquele momento… nada é por acaso? Naquele lugar religião que era seu apartamento, descobrimos suas traduções inéditas da Emily Dickinson, inacabadas, e futuramente publicadas póstumas com curadoria minha e da Sonia Giorgi, sua herdeira; nada é por acaso? Mais adiante, suas traduções da Emily Dickinson se tornaram meu objeto de estudo de mestrado e doutorado na UFBA e minha missão de divulgação de sua voz poética potente e metafísica no Brasil e no mundo. Nada é por acaso?
⠀⠀⠀Nada então mais natural que traduzir essa sua última obra poética, publicada em vida, para o português brasileiro. A Árvore de luz, um livro profético, de uma mística, uma espécie de diário íntimo de uma visionaria, um concentrado de sua poética ao mesmo tempo precisa e espiritual. Tarefa muito árdua a de passar todo esse valor literário e filosófico para outra língua, para outra concepção de mundo; mas toda essa intimidade com sua vida e poesia de alguma forma me deu um aval para enfrentar a tarefa. Não conseguiria cumprir essa missão sozinho, afinal todas as grandes aventuras de nossas vidas devem ser compartilhas com grandes parceiros. Nesse caso, uma outra mulher fundamental na minha vida acadêmica e humana, Eugenia Maria Galeffi, minha orientadora de mestrado e sobretudo meu guia na "descoberta" do Novo Mundo desde que cheguei em 1998 na Bahia. Os desafios tradutórios, e não somente tradutórios, eram muitos: uma poesia alta, mas baixa ao mesmo tempo, uma espécie de Divina Comédia, onde referências bíblicas, alquimia, citações literárias de várias línguas e repertórios iam de mãos dadas com termos corriqueiros, do dia a dia, sem contar os inúmeros neologismos que Virgillito, como todo verdadeiro poeta deveria fazer, criava constantemente, neologismos que criavam novos lugares, novas cosmogonias: "ilnonsodove" (onãoseionde), “il Nonraggiunto” (o Nãoalcançado), etc. Resolvemos trazer para o leitor brasileiro todo esse estranhamento, desde o uso do tu até os termos áulicos, as figuras inusitadas, a concentração gráfica do texto, quase um caligrama, quase uma poesia concreta. Essa intimidade com o outro traduzido é fundamental, a meu ver; escrevi disso em muitos artigos e livros científicos publicados ao longo desses anos. Sem essa intimidade profunda com Virgillito, com seu universo poético, com sua biblioteca, com sua casa, com seus manuscritos, sem a proximidade com o meu próprio fazer poético, com certeza não teria conseguido reescrever todo esse aparato artístico extraordinário de forma genuína e sensível. O aporte de uma escritora, tradutora, professora brasileira, desde sempre em diálogo com a Itália, Eugenia Galeffi, também foi fundamental para chegar onde eu sozinho não teria conseguido. Assim, esta tradução é uma verdadeira obra coletiva de construção de sentidos e significados para um novo leitor. Nessa eterna gênese está o sentido do fazer artístico, ser descoberto a cada olhar, seja qual for. Orgulho-me dessa tradução e desse novo olhar que contribuiu para despertar o interesse por uma mulher extraordinária do cânone literário italiano que pouco reconhecimento teve em vida, talvez por sua atitude discreta em relação à fama e à vida, mas que merece esse infinito olhar de todos os leitores e dos leitores brasileiros que com certeza devem se identificar com sua poesia dicotômica, sempre oscilando entre a experiencia do abismo e a salvação.
OS GÊMEOS
Antes do nascimento
invertido
levanta os braços
ao alto
(se conseguires!) estamos
quase chegando ,
falta pouco e
precipitar-te-ás para fora —
e agora?
Aperta-me forte ,
é a hora —
logo
a morte—
ou a vida que
estoura
VIRGILLITO, Rina Sara. A árvore de luz. Translation from Sergio Romanelli; Eugenia M. Galeffi. 1. ed. Florianópolis, SC: Rafael Copetti Editor, 2016.