O sonho do Rio de Janeiro e A baía do Rio de Janeiro (pp. 291-317)
Por Adriana Marcolini
Outubro/2024
⠀⠀⠀A ideia de traduzir Sull’Oceano, de Edmondo De Amicis (1846-1908), surgiu quando me deparei pela primeira vez com o livro, durante a minha dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo. Eu não o conhecia e fiquei impressionada com a força daquele relato em que os migrantes deixam de ser apenas números e ganham uma face humana, com seus defeitos, qualidades e medos. Lançado na Itália em 1889, Sull’Oceano foi um sucesso estrondoso: em apenas duas semanas teve dez edições. É o primeiro romance da emigração italiana e um dos poucos livros a enfrentar o tema da emigração na sua fase mais dura e dramática.
⠀⠀⠀O livro narra a travessia que De Amicis fez em 1884 em um navio de emigrantes italianos com destino à Argentina. A embarcação transportava 50 passageiros na primeira classe (entre os quais o escritor), 20 na segunda e 1.600 na terceira – os emigrantes. Também havia cerca de 200 tripulantes. O autor, que na época já era bastante conhecido, tinha sido convidado a visitar a Argentina para ministrar palestras sobre a cultura e a história da Itália. Ele permaneceu três meses no país e também visitou Montevidéu. Na volta à Europa, passou três dias no Rio de Janeiro, durante uma escala da viagem, e foi ciceroneado por um representante diplomático da Itália.
⠀⠀⠀O navio era um microcosmo da sociedade italiana da época. Alguns trechos emblemáticos, como o nascimento de um bebê e a morte de um passageiro, humanizam a narrativa: o primeiro representa a esperança; o segundo, o medo de não chegar ao destino e ter o próprio corpo atirado no oceano, sem direito a uma sepultura. Essa possibilidade aterrorizava os emigrantes, muitos deles camponeses extremamente ligados à terra e à religiosidade católica, que nunca tinham visto o mar.
⠀⠀⠀Outro ponto emblemático é a passagem do Equador: representa o momento em que os emigrantes se dão conta de que estão realmente deixando o país natal para trás. É quando começa a crescer a ansiedade gerada pela incógnita do que virá adiante.
⠀⠀⠀A embarcação tem um forte componente alegórico na narrativa. É um microcosmo da nova nação que estava tomando corpo após a unificação da Itália, em 1861. A distribuição dos passageiros reproduz a estrutura social italiana da época: a burguesia proprietária na primeira classe, o estrato médio (artesãos, pequenos comerciantes, trabalhadores qualificados) na segunda e o campesinato na terceira. Durante a travessia, essa miniatura da Itália conviveu a bordo. Os 22 dias da viagem e o espaço delimitado pelo perímetro da embarcação funcionam como um elemento de tensão temporal e cenário para a trama – tal como no teatro. No palco, os protagonistas: os emigrantes.
⠀⠀⠀Ao ler Sull’Oceano, me surpreendi ao tomar conhecimento de que nenhuma editora brasileira havia publicado o livro. Era inédito. O edital do Programa de Ação Cultural (Proac), da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo, lançado no final de 2011, contemplava a categoria de tradução de obras de domínio público. Inscrevi a proposta da tradução. No início de 2012 veio a notícia de que havia sido selecionada. O financiamento foi de grande valia, mas não incluía a publicação. Encontrar uma editora foi mais difícil do que eu imaginava: entre idas e vindas, foram quase quatro anos de buscas! Até que, prestes a desistir, a Nova Alexandria, uma editora de São Paulo, abraçou a ideia. Mas eles não podiam arcar com todos os custos da publicação. Foi quando apresentei a sugestão de coedição ao então diretor do Instituto Italiano de Cultura de São Paulo, Renato Poma, que aprovou a proposta. Ele ficou surpreso com a notícia de que o livro era inédito no Brasil. Graças ao financiamento do Instituto, também traduzi os dois relatos que De Amicis publicou na imprensa italiana sobre o Rio de Janeiro e que eu havia descoberto na Itália. Ambos foram incluídos na edição.
⠀⠀⠀A tradução foi realizada com base na edição de Sull’Oceano publicada pela editora Garzanti, de Milão, em 1996. Na medida do possível, optei por respeitar a forma de escrever do autor. Assim sendo, quando aparecem no texto as grafias de Argentinos (com maiúscula na inicial), italianos (com a inicial minúscula) ou Delegacia (com “D” em maiúscula) foi porque De Amicis escreveu assim.
⠀⠀⠀O escritor inseriu – em itálico – muitas frases e palavras em dialeto (a maior parte em vêneto e genovês), além de algumas em francês e espanhol. Escolhi deixá-las na tradução tal como se encontram no original, para que fosse preservada a fluidez na leitura e fosse mantida a maneira como o autor escreveu. O itálico foi mantido. Coloquei a tradução em notas de rodapé. Dessa forma, também preservei o sabor do texto original e trouxe à tona a riqueza dos dialetos e a diversidade dos passageiros a bordo do navio (assim como deve ter imaginado De Amicis quando manteve as frases e as palavras em dialeto no corpo do texto).
⠀⠀⠀Em Alto-Mar foi lançado em 2017 em edição de capa dura, com tiragem inicial de 1,5 mil exemplares. Está na segunda edição, desta vez em formato brochura. O livro também está disponível no formato e-book. Nas primeiras páginas pode-se ver a foto do navio Nord America (cortesia do Arquivo Histórico Fotográfico da Prefeitura de Gênova), em que Edmondo De Amicis viajou para a Argentina – batizado de Galileo no romance. A edição conta com uma carta ao leitor, escrita por Renato Poma; com a introdução e com a biografia resumida do autor redigidas por mim; e os relatos O sonho do Rio de Janeiro e Na baía do Rio de Janeiro foram inseridos no final, em “Textos avulsos de Edmondo De Amicis”. A cópia de uma ilustração de Arnaldo Ferraguti, feita para a edição de luxo de Sull’Oceano (1890), separa o fim do romance do início desta seção.
⠀⠀⠀A recepção de Em Alto-Mar junto ao leitor brasileiro foi ótima. Foram publicadas várias resenhas e notas na imprensa, com destaque para a de Luiz Zanin Oricchio, Inédito no Brasil, Em Alto-Mar narra viagem transatlântica (8/7/2017), no Caderno 2 do jornal O Estado de S.Paulo, e para a de Antonio De Ruggiero, A grande viagem, no jornal Zero Hora, de Porto Alegre (24/2/2018).
⠀⠀⠀Houve lançamentos em São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói e Porto Alegre – esse último na 63ª Feira Internacional do Livro. Em 2019, por ocasião do Dia Nacional do Imigrante Italiano, celebrado em 21 de fevereiro, a convite da Embaixada da Itália, fiz uma palestra sobre Em Alto-Mar em um auditório da Câmara dos Deputados, em Brasília. Também foram realizadas várias lives e aulas.
⠀⠀⠀O sucesso de Em Alto-Mar é um incentivo para descobrir outras “pérolas literárias” e fazer novas traduções.
AMICIS, Edmondo de. Em alto-mar. Translation from Adriana Marcolini. 1. ed. São Paulo, SP: Nova Alexandria, 2017. ISBN: 9788574924663.
Comments
Add comment
This document has not been commented yet, leave your comment by clicking on "Add comment"
You need to login to comment on this work