⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ Por Sergio Nunes Melo ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ Outubro/2024
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⠀⠀⠀Em 2011, num período de transição entre a conclusão de meu doutorado no Canadá e a retomada da trajetória profissional no Brasil, encaminhei a Joaci Pereira Furtado, responsável, na época, pelo projeto editorial do selo Tordesilhas, da Alaúde Editorial, que hoje se chama Alta Books, a proposta de tradução e cessão dos direitos para publicação de algumas peças de Pirandello. A recomendação era auspiciosa, visto que a obra do autor siciliano se tornara um objeto particularmente interessante para o mercado editorial, pois caíra em domínio público havia pouco tempo, o que dispensava a editora tanto do pagamento de direitos autorais quanto de um trabalhoso processo burocrático internacional. A proposição envolvendo o capital simbólico do porte de um Prêmio Nobel de literatura, além de trâmites descomplicados e sem custos adicionais, foi acolhida sem hesitação, e Assim é (se lhe parece) foi a primeira peça de Pirandello com minha tradução a ser publicada, em cópia física, ainda em 2011.
⠀⠀⠀Na sequência, me dediquei a Esta noite se improvisa, publicada em cópia eletrônica anos depois, em 2020. Traduzi ainda O Homem da flor na boca, cujos direitos de publicação também são da editora, a qual ainda mantém a peça no prelo. No que diz respeito às reverberações, nenhuma das traduções publicadas foi inscrita em certames, razão pela qual é impossível saber se alguma delas teria conquistado prêmios, e quase vai sem dizer que a cessão de direitos autorais de publicação à editora fica monetariamente aquém do esforço e da capacitação recrutados para levar a cabo qualquer projeto de tradução. Entretanto, o empenho de transmutação da peça do idioma italiano ao vernáculo foi premiado de vários outros modos.
⠀⠀⠀Detentor dos direitos autorais da tradução para encenações e reproduções audiovisuais, os cedi para a montagem paulistana de 2014, dirigida por Marco Antônio Pâmio com patrocínio principal do SESC-SP. Com uma encenação irrepreensível, a montagem venceu, no ano de sua estreia, três prêmios: o APCA de melhor direção para Marco Antônio Pâmio; o Shell de melhor ator para Rubens Caribé, no papel de Lamberto Laudisi; e o Arte Qualidade Brasil de melhor atriz em comédia para Bete Dorgam, no papel de Senhora Frola. A produção rendeu três temporadas entre 2014 e 2015. De logística complicada, com elenco numeroso para os parâmetros contemporâneos, além do cenário e figurinos, ou seja, uma produção onerosa em termos de transportes e hospedagens, a peça encerrou suas apresentações após sua única tournée interestadual, no Teatro da Caixa Cultural de Curitiba, em 2016. Além das temporadas, da tournée e dos prêmios, fui creditado e remunerado como tradutor do texto dramático por todas as apresentações. Trata-se de um prêmio discretíssimo, mas ainda assim bastante significativo.
⠀⠀⠀As falas apresentadas eram literalmente as impressas, e eu próprio tive a oportunidade de conferir a convergência entre texto dramático e texto espetacular em duas apresentações paulistas e uma paranaense. Por fim, mas não menos importante, a tradução tem sido utilizada, com frequência, por várias montagens escolares e amadoras, o que evidencia sua atualidade depois de treze anos de concepção, embora nunca tenha sido testada em leituras dramatizadas ou ensaios antes da versão final para o livro.
⠀⠀⠀O trabalho da tradução levou alguns meses e foi orientado de modo a atingir uma embocadura apropriada para a interação dos atores com o texto na cena, sem que deformasse a eloquência literária, nem distorcesse o sentido do texto original. Esta abordagem é inseparável de minha experiência prévia com atuação, composição dramatúrgica e observação abalizada do fenômeno cênico. À parte o vocabulário estritamente técnico, mínimo nesta peça, quase todos os itens lexicais não eram exatamente escolhidos, isto é, detectados por um ato de volição, mas iam sendo entrescolhidos, ou seja, atentamente ouvidos numa câmara imaginária. Neste horizonte, o maior trabalho foi o de fazer silêncio para que as personagens pudessem plasmar as falas da língua de origem na língua de destino. Trata-se de uma renúncia do ego em favor da auscultação das Musas. O mérito deste tradutor, portanto, não é o de ter recriado um texto originalmente muito bom, com palavras minhas, mas o de ter colaborado decisivamente em seu “parto” num outro tempo, num outro espaço, num outro contexto cultural e num outro sistema linguístico, motivado pela confiança de que é possível travar um diálogo com o passado: somos tradição, independentemente de como avaliamos esta condição. Neste sentido, é inegável que o teatro de hoje é tributário da obra de Pirandello, um renovador da milenar arte da cena.
⠀⠀⠀Natural de Càvusu, aldeia de Agrigento, Sicília, onde viveu desde o nascimento em 1867, até os treze anos, antes da mudança da família para Palermo, Pirandello declara, na cerimônia de recebimento do Prêmio Nobel de literatura de 1934, ter tido “a escola da vida” como principal curso de formação profissional, acenando para o papel que o acaso teve em sua trajetória. Seu destino também foi colocado em relevo num relato escolhido pelos irmãos Taviani como epígrafe da versão cinematográfica de quatro contos de inspiração regional do mestre siciliano no longa metragem Kaos: "Sou filho do Caos; e não alegoricamente, mas na justa realidade, porque nasci numa roça próxima a uma intrincada floresta chamada, em forma dialetal, Càvusu pelos habitantes de Girgenti [hoje, Agrigento], uma corrupção dialetal da genuína e antiga palavra grega ‘Kaos’."
⠀⠀⠀Como cidadão nativo de Agrigento, outrora Akragas, próspera colônia grega, além de herdeiro consciente e brioso da divindade primordial mais primitiva de todas, o Caos, Pirandello foi também legatário de uma cultura teatral longínqua, como atestam as ruínas do anfiteatro descoberto em 2016. Revelando um pendor nato para as artes, dirigiu sua primeira peça teatral na infância e escreveu sua primeira comédia aos dezenove anos. Rejeitando suas obras teatrais de juventude, Pirandello destruiu sua comédia de estreia um ano depois. Dos vinte aos trinta anos, escreveu dez textos dramáticos enquanto aprendia tenazmente com seus erros. Dos trinta aos quarenta e cinco anos, não escreveu para teatro, embora nunca tenha abandonado a mais jovem das artes antigas. Foi somente aos quarenta e cinco anos que retomou o teatro com vigor suficiente para mudar a história das artes cênicas com inovações que evidenciavam a própria gramática cênica enquanto a desfamiliarizavam.
⠀⠀⠀Entre as motivações para jamais abandonar o teatro, com certeza estava sua admiração pela atriz Marta Abba, trinta e quatro anos mais jovem que ele. Estrela das peças de Pirandello desde o ano em que se conheceram, 1925, até quando ela decidiu montar a própria companhia, em 1930, Marta Abba se tornou sua musa. Em 1937, ela foi viver nos Estados Unidos, onde continuou a brilhar como estrela da própria companhia e, no ano seguinte, casou-se com um milionário americano. Não se sabe se o autor-diretor e a atriz chegaram a ter um relacionamento amoroso. Porém, se a paixão entre ambos nunca se consumou, não se deveu à falta de interesse de Pirandello que, embora casado desde 1894 com Maria Antonieta Portulano, mãe de seus três filhos, levava uma vida de homem solitário, pois a esposa, que teve o primeiro transtorno psíquico em 1903, já vivia internada permanentemente numa clínica psiquiátrica desde 1919. Da relação entre mestre e discípula, existe hoje um acervo de nada menos do que 552 cartas escritas por Pirandello a ela.
⠀⠀⠀O tema do convívio exclusivamente epistolar é indispensável na peça em que mãe e filha (ou sogra e nova esposa do genro de acordo com a versão do Senhor Ponza) se comunicam somente por mensagens escritas em pedaço de papel que sobem e descem por uma corda dentro de um cesto de pães no pátio do edifício onde mora a mais jovem. Ao ser consultado sobre sua inspiração para a comédia-parábola adaptada de uma novela de sua própria autoria, Pirandello afirmou que a ideia lhe tinha vindo num sonho. O fato é que a estranha situação de um marido, uma esposa e uma sogra, sobreviventes de um terremoto num município que desapareceu do mapa, instalados numa cidade cuja população perplexa lhes assedia, tem muito em comum com Pirandello. Afinal, é provável que a desventura para a qual a piedade só é remédio se permanecer oculta fosse uma velha conhecida de um marido que gradualmente vai sendo alienado da esposa por motivos completamente alheios à vontade de ambos.
⠀⠀⠀Frequentemente interpretada como uma dramatização do conceito de relativismo irrestrito, Assim é (se lhe parece) dificilmente teria sido concebida com uma intenção tão ingênua ainda que Pirandello destaque a subjetividade como componente inescapável da visada que cada um tem da realidade na fala final da Senhora Ponza. A chave para a centralidade da parábola parece residir numa fala da Senhora Frola diante da pressão máxima da comunidade. Segundo ela, o modo como o genro trata a filha não deve ser interpretado como crueldade. Ao contrário, trata-se de amor transbordante, de ímpeto da natureza.
⠀⠀⠀“Nietzsche dizia que os gregos erigiam estátuas brancas sobre o negro abismo para escondê-lo. Esses tempos passaram. Eu, ao contrário, as agito para revelá-lo,” reflete Pirandello, fazendo transparecer experiência sobre o sofrimento extremo e sua intenção de lhe dar forma, como possibilidade de redenção.
COLLURA, Matteo. Il gioco delle parti: Vita straordinaria di Luigi Pirandello. Milano: Longanesi, 2010.
KAOS. Direção: Paolo e Vittorio Taviani. Produção e distribuição: Itália, Rai Radiotelevisione Italiana e Filmtre S. r. L / Sacis. 1984. 1 filme (190’).
MACCHIA, Giovanni. (1969) "Il teatro di Luigi Pirandello". In PIRANDELLO, Luigi. Teatro. Milano: Garzanti, 2009. p. 4-24.
PIRANDELLO, Luigi. (1917) Così è (se vi pare). Palermo: Selino, s/d.
PIRANDELLO, Luigi. Assim é (se lhe parece). Tradução de Sergio Nunes Melo. São Paulo: Alaúde, 2011.
PIRANDELLO, Luigi. Assim é (se lhe parece). Translation from Sérgio Nunes Melo. São Paulo, SP: Tordesilhas, 2011. ISBN: 9788564406094.