Por Erica Salatini (UFBA)
Novembro/2024
⠀⠀⠀Quaderno Proibito, romance de Alba de Céspedes, publicado originalmente em 1952, ganhou recentemente uma nova tradução no Brasil: a editora Companhia das Letras publicou a tradução de Joana Angélica D'Avila de Melo com o título Caderno proibido, em 2022. O volume alcançou grande popularidade, fazendo circular o nome da autora nas redes sociais, foi alvo de críticas nos mais diversos blogues e revistas, e esteve também presente em vários eventos acadêmicos e de divulgação literária. Apesar do recente sucesso editorial, a obra de Céspedes não é propriamente uma novidade no panorama literário nacional.
Céspedes foi traduzida pela primeira vez no Brasil em 1947 pelo Instituto Progresso Editorial, IPÊ, uma editora que tinha como objetivo divulgar a literatura italiana no Brasil. Entre os inúmeros autores traduzidos nas décadas de 1940 e 1950 por iniciativa da editora, a única mulher traduzida foi Alba de Céspedes, segundo dados disponíveis no DBLIT. A tradução de seu romance de estreia, Nessuno torna indietro, de 1938, grande sucesso na Itália e traduzido em vários outros países, chegou ao Brasil com o título Ninguém volta atrás, com tradução de Augusto de Souza em 1948.
⠀⠀⠀Na década de 1950, Céspedes era uma personalidade conhecida no Brasil e em outros países americanos, como Cuba e Estados Unidos, principalmente por questões familiares: seu pai, Carlos Manuel de Céspedes y Quesada, filho do primeiro presidente da República de Cuba, era embaixador na Itália; seu marido, Franco Bounous, era secretário da embaixada italiana em Washington na época. Durante esse período, várias notas sobre os seus livros publicados na Europa e as suas viagens ao continente americano, nomeadamente a Cuba, podem ser encontradas em revistas e jornais nacionais. A presença da autora foi noticiada em vários jornais como “O Globo” e “O Estado de São Paulo”, que deram notícias ou publicaram resenhas de suas obras narrativas, de seus artigos, e também de possíveis traduções de suas obras no Brasil, como um anúncio, encontrado no Estadão, indicando a tradução de uma novela da autora (A esposa) publicada em 1953, em três fascículos, na Revista de Cultura Anhembi, periódico paulista publicado entre 1950 e 1962.
⠀⠀⠀Apesar dessa popularidade, traduções de outros romances de Céspedes só foram publicadas aqui na década de 1960, numa época de grande efervescência cultural e de engajamento social e feminista. Durante esses anos, Alba de Céspedes já era conhecida internacionalmente e ganhou bastante popularidade no Brasil: seu primeiro romance foi reeditado e duas novas traduções de sua obra apareceram. Em 1962, a editora Civilização Brasileira reeditou Ninguém volta atrás e publicou também a primeira tradução brasileira de Caderno proibido, de Carla Imana de Queiroz. Em 1968, publicou também uma tradução de Il rimorso (1963), intitulada O remorso: Uma nova mulher.
⠀⠀⠀Em relação às traduções de Céspedes da década de 1960, Marcia de Almeida, professora de literatura italiana da Universidade Federal de Juiz de Fora, observa uma diferente orientação em termos de intenção dessas publicações, que dessa vez se destinavam a um “novo público no Brasil, as mulheres, devido às mudanças no papel social da mulher a partir da década de 1960” (ALMEIDA, MORAIS e PONTES, 2014, p. 66.) ); vê-se, por exemplo, na contracapa de Ninguém volta atrás uma dedicatória às leitoras brasileiras, enfatizando que o romance se destina quase “exclusivamente às mulheres, um público leitor novo para uma obra que retrata a vida de diferentes mulheres com problemas comuns ao seu tempo” (ALMEIDA, MORAIS e PONTES, 2014, p.67).
⠀⠀⠀De fato, nos romances de Céspedes, as mulheres são sempre protagonistas e os temas estão geralmente relacionados ao universo feminino, descrevendo a condição da mulher no casamento e na sociedade italiana desde o período fascista até ao início dos anos sessenta. Caderno Proibido, ao contrário do romance de estreia, mais objetivo e escrito na terceira pessoa, é um romance escrito em primeira pessoa, sob a forma de diário, tal como O Remorso, um romance epistolar com excertos de diário que continua a desenvolver e a investigar a narrativa na primeira pessoa, um dos livros mais complexos da produção novelística de Céspedes. Atualmente, a crítica tem analisado e descrito os seus procedimentos e técnicas narrativas, afirmando a habilidade narrativa da autora.
⠀⠀⠀No Brasil, podemos destacar o pioneirismo dos estudos sobre a literatura feminina italiana do século XX realizados pela já referida Márcia de Almeida, que coordenou uma pesquisa sobre a obra de Alba de Céspedes, produzindo os primeiros artigos acadêmicos sobre a autora, publicados em diferentes revistas acadêmicas nacionais. Os artigos analisam os três romances de Céspedes à luz da crítica feminista, recorrendo criticamente a O Segundo Sexo, de Simone de Beuaviour, e a Problemas de Gênero, de Judith Butler. Os artigos refletem sobre o papel que as mulheres ocupam na sociedade patriarcal, mostrando como Céspedes apresenta mulheres em busca de emancipação, seja ela econômico-social ou psicológica, um tema fundamental de Caderno proibido.
⠀⠀⠀Scoralick e Imbroisi examinam, em Caderno proibido, a relação entre a mulher e o seu ambiente, o contraste entre papéis e comportamentos esperados e o desenvolvimento de uma subjetividade, conscientemente colhida pelo processo de escrita. Maddaleno, por sua vez, aborda a questão do “desvelar da personagem feminina” no mesmo romance, partindo sobretudo da escrita diarística, um tema caro aos leitores de hoje que apreciam a “escrita de si”. Como os artigos foram publicados em 2012 e 2018, respectivamente, as autoras utilizaram a tradução de Carla Inama de Queiroz, a única disponível naquele momento. Maddaleno sublinha no seu artigo a presença e a importância do ensaio de Virginia Woolf, Um teto todo seu, para a escrita de Céspedes, em particular para a escrita do Caderno, na medida em que reflete sobre o lugar e o espaço da mulher na sociedade moderna, para além de sublinhar o fato de a escrita ter sido sempre encorajada como uma prioridade para os homens e não para as mulheres.
⠀⠀⠀Dessa forma, Valéria, a personagem central de Caderno proibido, uma mulher de 43 anos, casada e mãe de dois filhos, revela-nos, através de seu diário pessoal, um eu que se transforma pela escrita, uma escrita que é libertação e que se constrói em torno da identidade e dos valores da personagem. Valéria trabalha em um escritório, mas também é dona de casa, na Itália dos anos de 1950, pós-Segunda Guerra Mundial, vivenciando os problemas sociais e econômicos da pequena burguesia, empobrecida pela guerra, mostrando uma sociedade que se recupera aos poucos, econômica e moralmente. O despertar de Valéria coincide com o início da recuperação da Itália em reconstrução.
⠀⠀⠀O romance em forma de diário começa em 26 de novembro de 1950, quando a protagonista compra um caderninho preto, e termina em 27 de maio, num período total de seis meses de escrita. De uma escrita vacilante, culpada, escassa e fragmentária, Valéria passa a uma escrita habitual, compulsiva e reflexiva, registrando, por vezes, mais de um relato no mesmo dia: “esta escrita diária a seduz e instiga, fazendo-a sair dos níveis conscientes de uma realidade pobre em experiências para entrar num lugar onde é possível manifestar a sua própria existência, permeada pelos seus sentimentos mais íntimos e pelos seus desejos mais recônditos” (MADDALENO, 2018, p. 132-3).
⠀⠀⠀A escrita de si, a condição feminina e a maternidade são alguns dos principais temas que podemos destacar no romance. Além disso, podemos destacar dois interessantes diálogos intertextuais que a escrita de Céspedes estabelece: o primeiro, mais evidente, já citado por Maddaleno, com Virginia Woolf, e o outro, mais recentemente apontado, com a contemporaneidade, por meio da obra da escritora Elena Ferrante, que menciona Céspedes em Frantumaglia como um de suas precursoras o que, talvez, estimulou a nova tradução brasileira do romance.
⠀⠀⠀O tema da maternidade é outro de interesse do leitor contemporâneo: a relação conflituosa entre Valéria e a filha Mirella retoma o conceito de maternidade como um duplo e uma abnegação, tal como Beauvoir expõe em O Segundo Sexo. Mas se, para Mirella, a mãe é um espelho no qual a filha não se quer ver refletida, para o filho Riccardo, a mãe é o ideal de mulher resignada e submissa que ele procura nas outras mulheres, um aspecto do comportamento de Valéria já salientado por Scoralick e Imbroisi, que mostra como essa mulher, que encarna sobretudo o papel de mãe (até o marido lhe chama “mãe”!), vai se libertando dessas máscaras sociais e vai se desconstruindo através da escrita auto-reflexiva do seu diário.
⠀⠀⠀Além dos temas, recentemente, a forma do romance também foi objeto de análise do ensaio sobre literatura e história publicado por Júlio Pimentel Pinto, professor de história da Universidade de São Paulo (Sobre literatura e história. Como a ficção constrói a experiência, Companhia das Letras, 2023), que analisa a obra de Céspedes a partir de sua escrita diarística, comparando-a com outros autores modernos, e pensando a importância da forma diarística para a construção da experiência do sujeito moderno.
⠀⠀⠀Assim, podemos constatar que a nova tradução do Caderno proibido sublinha a atualidade do romance, escrito há mais de 70 anos, bem como a necessidade de se conhecer uma escritora prolífica, incentivando as gerações mais jovens a lerem e se familiarizarem com sua escrita. Podemos sublinhar também a importância de uma editora como a Companhia das Letras para a notoriedade e o prestígio de uma tradução no mercado editorial e no sistema literário, fazendo com que o nome de uma escritora como Céspedes, conhecida no passado mas esquecida há quase cinquenta anos no nosso país, voltasse a estar em voga. Colocada de novo em circulação graças a estudos acadêmicos de matriz feminista, que possibilitaram novas leituras e releituras, podemos dizer que a nova tradução é o resultado, acima de tudo, de uma nova percepção e de um novo discurso sobre a literatura feminina, da necessidade de se pensar um cânone feminino, de dar a conhecer às novas gerações autoras que foram, durante muito tempo, postas de lado pela historiografia e pela crítica literária.
ALMEIDA, M., MORAIS, J. R. e PONTES, I. A.”As obras de Alba de Céspedes traduzidas no Brasil”. In: Revista Colineares. n.1. vol II, jul/dez 2014.
CÈSPEDES, Alba de. Caderno proibido. Trad. Carla Inama de Queiroz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
__________ Caderno proibido. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
MADDALENO, Izabella. “O desvelar da personagem feminina através da escrita pactuária do diário” in: GARRAFA. Vol. 16, n. 44, Revista da UFJF, Jan.-Jun. 2018. p. 129 -146.
PIMENTEL PINTO, J. Sobre literatura e história. Como a ficção constrói a experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
SCORALICK, J. e IMBROISI, W. “A escrita da mulher como consciência: o caderno, a contestação e a mudança proibidos”. In: Revista Letras Raras (UAL/UFCG), vol. 1, nº 1, 2012.
CÉSPEDES, Alba De. Caderno proibido. Translation from Joana Angélica D'Avila Melo. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2022. ISBN: 9786559212194.