Por Silvia La Regina
Novembro/2024
⠀⠀⠀Emilio Salgari, escritor italiano (Verona, 1862 - Torino 1911), hoje, mesmo sem ter sido completamente esquecido, é considerado um autor menor “para meninos”, algo de um passado percebido como muito distante, mas, durante pelo menos três gerações, foi, com Júlio Verne, o escritor mais lido por crianças e adolescentes italianos (de fato, um público majoritariamente masculino) e seus inúmeros romances de aventura tiveram um sucesso até então não alcançado por ninguém no país, a não ser Carolina Invernizio, que, por sua vez, escrevia para as mulheres.
⠀⠀⠀Salgari à época foi “ignorato dalla critica, malvisto dagli educatori, amatissimo dai lettori” (ignorado pela crítica, malvisto pelos educadores, adorado pelos leitores [Detti, 2006]. Ele começou e continuou sua carreira num momento de grandes mudanças no panorama literário e principalmente editorial italiano (ver Toppano, 2017): a recente unificação do país (1861-1870) carregara consigo o aparecimento de uma nova cultura de massa, direcionada à recém criada burguesia urbana, em boa parte de funcionários públicos, e ao proletariado a ser alfabetizado, categorias que precisavam de leituras inteligentes mas não acadêmicas, de instrução e diversão, de informação e de entretenimento. Estes gêneros faltavam à Itália, que, portanto, inicialmente recorreu maciçamente às traduções (sobretudo do francês, dada a grande quantidade de publicações francesas, com um mercado editorial mais vivaz e preparado) considerando também uma relativa desconfiança inicial para com os autores nacionais. Novas categorias de leitores surgiam e demandavam novos textos, novas estórias, novos heróis e novos ambientes, em textos que muitas vezes narravam aventuras em terras distantes (havia numerosas revistas só sobre este assunto) e agradavam os leitores misturando exotismo, mistério, aventura, pormenores sangrentos e eventuais e vagas referências histórico-políticas, sempre evidentemente em perspectiva eurocêntrica e colonialista. Toda a Europa estava envolvida na infeliz corrida para a criação de impérios coloniais, corrida na qual a Itália investiu em sua tentativa de adquirir respeito internacional, por um lado, e, pelo outro, principalmente, de se expandir por meio da conquista militar e comercial através de seus emigrantes – construindo, aliás, justificativas intelectuais para a politica de expansão na África (militar) e na América do Sul (através dos emigrantes): sabemos, por exemplo, que se pedia ou exigia que o Brasil tivesse uma relação comercial privilegiada com a Itália, com a interessante e cínica alegação de que a Itália estava perdendo força de trabalho por causa da emigração e por isso precisaria ser “indenizada” através de tratados comerciais mais favoráveis (cf. La Regina, 2023).
⠀⠀⠀Esta é a época de Salgari, um pacato funcionário público que, sem viajar a não ser com a fantasia e procurando informações nas bibliotecas da cidade, com uma prolificidade assustadora (ainda que numerosos romances a ele atribuídos sejam apócrifos), publicou de 1882, com um conto-feuilleton, I selvaggi della Papuasia, ao póstumo Straordinarie avventure di Testa di Pietra, de 1915, mais de 80 romances e inúmeros contos. Em sua maioria, os livros de Salgari tratam de aventuras de heróis em lugares distantes e sentidos como misteriosos, principalmente exóticos: era a época das revistas de viagens e o desconhecido inflamava a imaginação dos jovens leitores (mas, como vimos acima, entra aqui também a questão das explorações que visavam às conquistas coloniais), que se viam projetados na Malásia, na Índia, na África, na Oceania, no Far West e no passado fabuloso de corsários e piratas. Personagens como o Corsário negro e Sandokan estavam bem vivos pelo menos até a década de 70 do século XX, quando Sandokan, uma minissérie da Rai, a televisão pública italiana, teve um sucesso extraordinário, repetido pelo filme Il corsaro nero, ambos dirigidos por Sergio Sollima em 1976 (e é de 2024 a notícia de um remake de Sandokan). Salgari, porém, escreveu também alguns poucos romances e contos da então incipiente ficção cientifica (antecipando um movimento da década de 20 do século passado, quando as revistas de viagens e aventuras, esgotado o fascínio do mundo real, passam a publicar contos fantásticos, até antes da criação das primeiras revistas de ficção cientifica estadunidense - cf. Foni, 2007). Em sua produção de ficção científica devem ser lembrados o conto “Alla conquista della luna”, de 1904, com protagonistas brasileiros, e principalmente Le meraviglie del Duemila, publicado em 1907. Desse romance sombrio e melancólico, de fato pouco adequado a um público juvenil, existe uma tradução de Carlos Heitor Cony, com ilustrações, publicada pela Ediouro em 1972. A tradução que fiz em 2022, completamente independente da de Cony, não foi, portanto, de um romance inédito no Brasil, mas de um texto que, já publicado 50 anos antes, não tivera especial repercussão e cuja tradução já estava um pouco envelhecida; achei interessante, portanto, passar à retradução do texto. Na atualidade, inclusive, vários romances de Salgari estão voltando a ser publicados no Brasil, possivelmente favorecidos também pelo fato de não incidirem direitos autorais sobre a obra do autor italiano.
⠀⠀⠀A nova edição de As Maravilhas do ano 2000 foi publicada pela editora paulista Diário Macabro, uma pequena editora independente, jovem e muito vivaz, especializada em contos e romances de terror e de ficção cientifica, com ênfase, por um lado, nos autores clássicos norte-americanos dos dois gêneros e, por outro, na produção de jovens escritores brasileiros, com uma revista homônima e várias antologias. Fui apaixonada leitora de Salgari quando criança, tendo uma coleção de dezenas de volumes dele, entre os quais preferia as aventuras de Sandokan. Apesar de ter lido muitas obras do autor, não conhecia Le meraviglie del Duemila; assim, descobri este romance de Salgari no âmbito de um trabalho mais amplo sobre a ficção cientifica italiana (da qual Le meraviglie del Duemila talvez seja o primeiro romance), com curiosas e absolutamente casuais assonâncias com o romance de Verne, Paris au XXeme siècle, escrito em 1863, mas perdido e inédito até 1994.
⠀⠀⠀Propus o texto a um dos editores da Diário Macabro, Pedro Andrade, à época estudante na Universidade Federal do Sul da Bahia. O livro, com notas de Alexander Meireles e posfácio meu, foi publicado graças a um financiamento coletivo; a edição é extremamente cuidada, com projeto gráfico e capa muito interessantes e bem elaborados. A repercussão da publicação não foi especialmente significativa, mas houve algumas resenhas online e participei de um webinar da Universidade de São Paulo sobre ficção científica, no qual comentei a tradução.
⠀⠀⠀O romance se passa em 1903, no norte dos Estados Unidos, e trata de dois amigos, um cientista e um jovem blasé, que - o mais novo por tédio e uma certa pulsão suicida, o outro por paixão cientifica - decidem testar uma maravilhosa descoberta, que, sob certas condições, permitiria que eles dormissem por cem anos (o que não deixa de ser a adaptação cientifica de um topos fiabesco). Salgari imagina uma espécie de animação suspensa em uma rudimentar cápsula criogênica, e não é o único acerto quanto ao que poderia ser o nosso século: quando os dois amigos acordam em 2003, graças à ação de um descendente do cientista, descobrem um mundo em que as diferenças sociais ficaram ainda mais acirradas, e os excluídos, os presidiários, longe de ser reintegrados na sociedade, ficam isolados em ilhas artificiais; a China é uma potência mundial, os pobres comem só pílulas para não perder tempo no trabalho, há uma crise climática e a pressa e sua metáfora, a eletricidade, governam um mundo álgido e tecnológico. Muita aventura, muitas surpresas e muita melancolia atravessam o romance, cuja visão do futuro, longe de ser esperançosa e solar, realmente antecipa os textos canônicos da ficção cientifica, pintando uma rudimentar distopia, uma sociedade mórbida, cruel e asséptica.
⠀⠀⠀A prosa de Salgari não oferece grandes dificuldades ao tradutor: seu texto é simples, por vezes aparentemente descuidado, com algumas repetições e sem veleidades artísticas. A força do autor definitivamente não é fruto de um estilo rebuscado, mas da narração construída através de imagens fortes e poderosas que tomam vida perante o leitor.
DETTI, Ermanno. Emilio Salgari. Enciclopedia dei ragazzi Treccani. https://www.treccani.it/enciclopedia/emilio-salgari_(Enciclopedia-dei-ragazzi)
/#:~:text=Le%20sue%20opere%20principali%20possono,riconquista%20di%20Mompracem%20(1910). Acesso em 22/10/2024.
FONI, Fabrizio. «I lettori hanno bisogno di sale, di droghe, di eccitanti». Nero, fantastico e bizzarrie varie nella Domenica del Corriere (1899-1909). Tesi di dottorato, Università degli studi di Trieste XX ciclo in Italianistica, a.a. 2006-2007. https://www.openstarts.units.it/entities/publication/9f725998-bcd9-454e-b357-915623fe6499/details. Acesso em 02/03/2024.
LA REGINA, Silvia. Vicenzo Grossi: traduzindo o olhar colonial. Cadernos de Tradução. Florianópolis, v. 43, no esp. 2, p. 369-386, 2023.
SALGARI, Emilio. As maravilhas do ano 2000. Texto em português de Carlos Heitor Cony. Rio de Janeiro: Ediouro, 1972.
SALGARI, Emilio. I selvaggi della Papuasia (1881). Segrate (MI), Piemme, 2013.
SALGARI, Emilio. Le meraviglie del Duemila. Vedano Olona (VA): Crescere, 2019
SALGARI, Emilio. Le meraviglie del Duemila. I ed. Firenze: Bemporad, 1907.
SALGARI, Emilio; Gianella, Aristide Marino. Straordinarie avventure di Testa di Pietra (1915). Milano: Mursia, 1974.
SALGARI. Alla conquista della luna. Roma: Cliquot, 2018.
SALGARI. As maravilhas do ano 2000. Tradução e posfácio de Silvia La Regina, notas de Alexandre Meireles. Rio Claro, SP: Diário Macabro, 2022.
TOPPANO, Michela. Federico De Roberto e il Giornale illustrato dei viaggi e delle avventure di terra e di mare. Studi sul Settecento e l'Ottocento: rivista internazionale di italianistica, XII, 2017. p.37-61.
VERNE, Jules. Paris au XXeme siècle. Paris: Hachette, 1994.
SALGARI, Emilio. As maravilhas do ano 2000. Tradução de Silvia La Regina. 1. ed. Rio Claro, SP: Diário Macabro, 2022.