Plaquete
Por Denise Durante e Paulo de Toledo
Junho/2025
⠀⠀⠀Murilo Mendes nasceu em Juiz de Fora (MG), no dia 13/05/1901. Em 1910, ele vê passar no céu mineiro o Cometa Halley, evento que, segundo o próprio Murilo, o despertaria para a poesia. Escreve ele em A idade do serrote: “Passagem do cometa Halley. A subversão da vista. A primeira ideia do cosmo.” (1994, p. 897).
⠀⠀⠀Em 1930, lança seu primeiro livro, Poemas (1925-1929), que receberá o importante Prêmio de Poesia Graça Aranha. Em 1947, casa-se com Maria da Saudade Cortesão, filha do historiador português Jaime Cortesão. Com Maria da Saudade, Murilo participa, entre 1952 e 1956, de uma missão cultural na França, na Bélgica e na Holanda. E, em 1957, o casal fixa-se definitivamente na Itália, onde o poeta se torna professor de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma e, posteriormente, também na Universidade de Pisa.
⠀⠀⠀Na Itália, Murilo trava contato com vários artistas e escritores de renome, como Emilio Villa, Giorgio Manganelli, Giuseppe Ungaretti e Rugero Jacobbi (os dois últimos, seus tradutores para o idioma de Dante). Em 1959, é publicada, na Itália, uma edição de Siciliana, com tradução de A. A. Chicchio e prefácio de Ungareti. E, em 1971, também na Itália, é publicada a antologia Poesia Libertà, organizada por Jacobbi. Em 1972, o poeta é agraciado com o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina, um dos mais importantes prêmios literários do mundo, atribuído anteriormente a, entre outros, Hans Magnus Enzensberger, Dylan Thomas, Tristan Tzara, Umberto Saba e Lawrence Ferlinghetti.
⠀⠀⠀Em 1968, compõe o livro Ipotesi, que será publicado apenas postumamente, em 1977, em Milão, com organização e prefácio da filóloga e crítica literária Luciana Stegagno Picchio. Numa carta de 09/04/1969, endereçada a Laís Corrêa de Araújo, informa o poeta: “Fora estes [livros], tenho quatro praticamente prontos, 4 livros de prosa, e um de poesia em italiano, Ipotesi (este foi já pedido por um editor milanês).” (2000, p. 192).
⠀⠀⠀Conforme informamos na “Apresentação” do nosso Murilo Mendes à italiana, fizemos as primeiras traduções dos poemas de Ipotesi no início dos anos 2000, sendo algumas delas estampadas, naquela época, na revista de poesia Babel, editada em Santos/SP pelo poeta Ademir Demarchi.
⠀⠀⠀A escolha dos poemas que compõem nosso Murilo Mendes à italiana seguiu os seguintes critérios: poemas cuja tradução daria um resultado satisfatório em português; e poemas que melhor poderiam representar o “espírito” da obra muriliana.
Para essa edição, foram traduzidos 23 poemas extraídos das seis seções que compõem Ipotesi (na edição de 1994, da Editora Aguilar, há também um “Apêndice” com poemas não publicados na edição original): I – Informazioni; II – Ipotesi; III – Epigrammi e Altro; IV – Omaggi; V – Città; e VI – Il Programma.
⠀⠀⠀Traduzimos também um poema escrito em francês, “Jeanne d’Arc”, publicado originalmente em Papiers (livro, assim como Ipotesi, de publicação póstuma).
⠀⠀⠀O poema “Jeanne d’Arc”, escrito provavelmente entre fins de 1969 e começo dos anos 1970, possui semelhanças com certas peças de Convergência, escrito entre 1963 e 1966. Como exemplo, podemos citar o trecho final do poema em prosa “Isabel”: “O rosto de Isabel. Os rastos de Isabel. O reino de Isabel. Os restos de Isabel.” (1994, p. 709). Comparemos com esse trecho de “Jeanne d’Arc”, em nossa tradução: “O coração de Joana d’Arc./ A comoção de Joana d’Arc.// A voz de Joana d’Arc./ As vozes de Joana d’Arc.” (2024, n.p.). Em ambos os poemas, há a ocorrência de jogos paranomásicos configurados por meio do uso de homofonias e homografias (rostos/rastos/restos; coração/comoção). Em A idade do serrote (1965-1966), lemos um texto que também se utiliza dos mesmos procedimentos apontados acima. Eis um excerto: “As têmporas do tempo. O tempo da onça. As têmporas da onça. O tampão do tempo. O temporal do tempo.” (1994, p. 897).
⠀⠀⠀Nos poemas de Ipotesi, também podem-se verificar semelhanças com as peças de Convergência, tanto na forma como nos temas apresentados. Aliás, há uma carta de Murilo Mendes a Laís Corrêa de Araújo na qual o poeta apresenta uma espécie de poética que pode ser identificada não somente em Convergência e Ipotesi como em quase toda a obra do “conciliador de contrários” (Manuel Bandeira dixit): “O discurso aristotélico, é verdade, me aborrece e está superado; mas creio ainda na tentativa de se combinar humanidade, experimentalismo e concisão (grifos nossos).” (2000, p. 192).
⠀⠀⠀Como exemplo dessas similitudes entre Convergência e Ipotesi, citemos os poemas da seção “IV – Omaggi” que lembram os “murilogramas” e os “grafitos” de Convergência (“Murilograma a Camões”, “Murilograma a João Cabral de Melo Neto” etc.; “Grafito para Sousândrade”, “Grafito para Li-Po” etc.). Daquela seção IV, traduzimos os poemas “Jean Arp”, “John Donne”, “Melville”, “Lautréamont”, “Gerard Manley Hopkins”, “Antonin Artaud”, “Ungaretti” e “Hans Magnus Enzensberger” (além de “E. E. Cummings”, que faz parte do “Apêndice”).
⠀⠀⠀Outra semelhança entre Ipotesi e Convergência é o idiossincrático uso de barras oblíquas entre palavras do mesmo verso: “Qualcuno è assurdo / lucido” (“Qualcuno”); “paziente / persuasiva” (“La catastrofe”) (2024, n.p.); “... as palavras / coisas / são belas” e “do dador da palavra / do sopro / da chama” (“Texto de informação”) (1994, p. 706); “mestre / malungo máxime” (“Grafito no Pão de Açúcar”) (1994, p. 633).
⠀⠀⠀“Texto de informação”, já citado, nos remete à seção “I – Informazioni”, de Ipotesi, e, mais especificamente, ao poema “Informazione” (não constante de Murilo Mendes à italiana). “Texto de informação” é um poema metalinguístico, como se pode observar no seguinte trecho: “Inserido numa paisagem quadrilíngue/ Tento operar com violência/ Essa coluna vertebral, a linguagem” (1994, p. 706). E, em “Informazione”, poema formado por sete estrofes que, aparentemente, podem ser lidas de forma independente, como se fossem poemas curtos, temos este trecho em que há uma alusão ao estruturalismo e a dois insignes estudiosos da linguagem, Barthes e Cassirer: “mi nascondo dietro un segno/ struturale di ferro/ sconosciuto a me stesso,/ a Barthes e a Cassirer” (“me escondo atrás de um signo/ estrutural de ferro/ desconhecido a mim mesmo,/ a Barthes e a Cassirer”. (1994, p. 1506).
⠀⠀⠀De Convergência e Ipotesi, “Explosões” e “L’ultimo uomo” podem também ser apontados como poemas que tratam de temas semelhantes. Eis dois trechos bastante ilustrativos: “Tudo agora e amanhã explode./ Exceto a Bomba: o homem não pode.” (2024, n.p.); “eccomi solo dinanzi alla bomba atomica:/ andremo a letto?” (“eis-me sozinho diante da bomba atômica:/ vamos pra cama?”) (2024, n.p.).
⠀⠀⠀Claramente, Ipotesi (assim como Convergência) é um livro muito influenciado pela sua época, um período histórico convulsionado pelo Maio de 68, pela corrida espacial (“Il cosmonauta”), pela Guerra Fria, pelo Vietnã (“le mie finestre insonni/ dànno sul Vietnam”, versos de “Il programma” (1994, p.)), pela contracultura, pelas inovações tecnológicas (“enquanto o siroco perturba os transistores vizinhos”, verso de “Roma” (2024, n.p.)), pelas crises socioeconômicas (“L’esplosione demografica”/”A explosão demográfica” (2024, n.p.)) e, especialmente, pela luta por liberdade (seja no Brasil da ditadura, seja em vários outros cantos do mundo, oprimidos por regimes totalitários ou por sistemas econômicos predatórios). O tema da liberdade nos remete imediatamente ao belo Poesia Liberdade, publicado em 1947, o qual, no poema “Aproximação do terror”, lemos os versos: “O poeta já nasce conscrito,/ Atento às fascinantes inclinações do erro,/ Já nasce com as cicatrizes da liberdade”. (1994, p. 432). Liberdade que nos lembra também “Epitaffio”/”Epitáfio”, que, em seu verso inicial, se lê: “Amò prima di tutto la libertà” (“Amou antes de tudo a liberdade”). (2024, n.p.).
⠀⠀⠀O ensaísta e crítico literário Murilo Marcondes de Moura, em seu livro O mundo sitiado, informa que, no início dos anos 1970, Murilo Mendes trabalhava na Universidade de Roma e era considerado pelos alunos o “professor do futuro”. O estudioso também cita uma entrevista de Murilo Mendes para Léo Gilson Ribeiro, na revista Veja, em 1972, na qual diz o poeta: “Desde há muitos anos que eu me sinto indisposto em relação ao sistema de vida desta civilização. (...) É uma espécie de rejeição de formas de viver erradas (...). Depois, quando vi os jovens nos anos 60 se revoltarem contra essa forma, recebi como que uma injeção de vitalidade, eu me senti jovem também.” (2016, p. 288-89)
⠀⠀⠀Murilo Mendes morre em 13 de agosto de 1975, em Lisboa, quando passava as férias de verão com Maria da Saudade, na casa que pertencera a Jaime Cortesão. Em homenagem ao poeta que fora sempre jovem, sempre o mesmo “menino experimental” que, quando criança, “quisera ir do Brasil a China a cavalo” (“Il viaggio”/“A viagem”) (2024, n.p.), transcrevemos o poema “Ritorno”/”Retorno” (2024, n.p.):
Um dia retornarei
para saudar o reino mineral
onde a desordem é mínima.
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia, correspondência. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
DURANTE, Denise; TOLEDO, Paulo de (Tradutores). Murilo Mendes à italiana. Londrina: Galileu Edições, 2024.
MOURA, Murilo Marcondes de. O mundo sitiado: a poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Editora 34, 2016.
PICCHIO, Luciana Stegagno (Org.). Murilo Mendes: poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
PICCHIO, Luciana Stegagno. Os melhores poemas de Murilo Mendes. São Paulo: Global, 1997.
MENDES, Murilo. Murilo Mendes à italiana: Seleção de poemas traduzidos do livro Ipotesi. Tradução de Paulo de Toledo; Denise Durante. 1. ed. Londrina, PR: Galileu Edições, 2024.