Por Francisco Degani
⠀⠀⠀Nascido em 1867 na Sicília, em uma casa de campo não muito longe da cidade de Agrigento, para onde a família havia se mudado para escapar de uma epidemia de cólera, Luigi Pirandello observa, nas páginas de uma autobiografia deixada incompleta: “O meu nascimento consta dos registros da pequena cidade situada sobre a colina (Agrigento). Entre tantos que morriam, um que nascia era quase uma compensação” (PIRANDELLO, 1977, p. 1282)
⠀⠀⠀O caráter inteiramente casual de nascer e viver é a característica de algumas de suas obras nas quais desenvolverá os temas da vida como jogo do acaso ou da multiplicidade do “eu” e, portanto, da negação da unidade da consciência do ser humano. Ainda na citada autobiografia, Pirandello nos conta: "Eu [...] sou filho do Caos; e não alegoricamente, mas de fato, porque nasci em um local que se encontra próximo a um intrincado bosque denominado pelos habitantes de Girgenti (Agrigento) Cavusu, corruptela dialetal do antigo vocábulo grego Kaos" (PIRANDELLO, 1977, p. 1281).
⠀⠀⠀O falecido Mattia Pascal foi escrito em anos difíceis. Um alagamento das minas de enxofre do pai do autor, na Sicília, onde estavam investidos todos os bens familiares e o dote da esposa, Maria Antonietta Portulano, com quem havia se casado em janeiro de 1894, levou todos à ruína. Para fazer frente às dificuldades econômicas, Pirandello começou a lecionar literatura italiana no Istituto Superiore di Magistero e dar aulas particulares de alemão, além de manter a atividade literária nas revistas "Il Marzocco" e "Ariel", fundadas por ele. Essas dificuldades diminuirão somente após 1908, quando a tradução em várias línguas do Falecido Mattia Pascal e a publicação de seu ensaio O humorismo, o levarão a ser contratado pela prestigiada Editora Treves.
⠀⠀⠀Publicado primeiramente em capítulos na revista "La nuova antologia", entre abril e junho de 1904, e a seguir em volume, O falecido Mattia Pascal é o terceiro romance de Luigi Pirandello e aquele que o tornou conhecido pelo público. É neste romance que o autor começa a esboçar os temas e os modelos narrativos que usaria daí em diante e apresenta, de um lado, as suas escolhas poéticas e de escrita e, de outro, a sua rejeição aos cânones narrativos vigentes. Suas obras anteriores, os romances A excluída e Il turno, além de algumas novelas, ainda eram fortemente ancoradas na tradição do romance naturalista de Giovanni Verga, seu conterrâneo e autor consagrado. Apesar de Pirandello ainda utilizar em seu romance os modelos existentes, ele o faz apenas para desmontá-los internamente e demonstrar sua impossibilidade naquele caótico início de século em que a condição humana era posta em xeque.
⠀⠀⠀O romance narra o percurso biográfico de Mattia Pascal. Mas, antes de chegar a uma exposição ordenada dos fatos, Pirandello oferece ao leitor duas premissas, o que por si só já é incomum, que articulam e introduzem temas preponderantes da poética pirandelliana. Na primeira há a explícita e imediata referência ao tema da identidade, chave do romance e, ao mesmo tempo, a representação da absoluta relatividade do conhecimento humano. Ao declarar sua única certeza: “Eu me chamo Mattia Pascal”, o protagonista coloca-se diante da absoluta relatividade dos fatos, pois atender por um nome não significa conhecer-se a si mesmo.
⠀⠀⠀A segunda premissa, de início, pretende mostrar como o protagonista resolveu escrever sua experiência, mas deriva para uma introdução filosófica quando ele decide explicar a causa de seu costumeiro estribilho: “Maldito seja Copérnico” (PIRANDELLO, 2007, p. 10). Para Mattia, desde que o sistema copernicano provou que a Terra è um “invisível piãozinho” (PIRANDELLO, 2007, p. 11), a primazia que o homem pensava ter sobre os acontecimentos do mundo foi retirada, causando não apenas uma sensação concreta de esvaziamento da realidade, mas também atribuindo uma valência cósmica à capacidade humana de dar objetividade à própria vida, já que os homens não eram mais o centro do universo. A segunda premissa termina com a constatação de que Mattia encontra-se em posição privilegiada para contar sua história, já que o acaso o colocou “fora da vida” (PIRANDELLO, 2007, p. 12).
⠀⠀⠀Qual é, afinal, esta posição privilegiada que permite a Mattia Pascal contar a própria história sem fazer mais parte dela?
⠀⠀⠀Sabe-se que, quando alguém se dispõe a narrar a própria história, é porque os fatos a serem narrados já aconteceram. O hiato temporal, entre o início dos acontecimentos e o início da narração, tende a diminuir à medida que os fatos se desenvolvem e a personagem aproxima-se do momento em que se torna narrador da própria história. Entre o protagonista, do momento em que começa a viver a experiência, e o mesmo protagonista, no ato de narrá-la, existe um substancial ganho de consciência porque, ao narrar uma história que lhe diz respeito, o narrador a supõe mais do que digna de interesse, pois ela lhe ensinou alguma coisa ou pelo menos o modificou.
⠀⠀⠀Assim, na estrutura do romance, as duas premissas e os dois capítulos finais se correspondem, pois pressupõem o nível de consciência atingido após o término dos fatos a serem narrados, tanto que a primeira fala e a última do protagonista podem parecer a mesma. O “Eu me chamo Mattia Pascal” (PIRANDELLO, 2007, p.7) da premissa, transforma-se, no capítulo final, em “Eu sou o falecido Mattia Pascal” (PIRANDELLO, 2007, p.200); ou seja, o ciclo se completou, o fugitivo da vida retornou ao ponto de partida onde encontrou finalmente descanso e sobriedade para narrar sua experiência.
⠀⠀⠀O protagonista alterna-se durante as fases do romance enquanto o narrador permanece o mesmo, aquele que está presente no início e no final da experiência vivida. Ou seja, o verdadeiro protagonista dos dois primeiros e dos dois últimos capítulos é o “falecido” Mattia Pascal, enquanto, nos capítulos de III a VI, o protagonista é o jovem Mattia e, depois de um capítulo intermediário (cap. VII), quando ele decide mudar de vida, considerando-se morto, passa a ser sua segunda encarnação, Adriano Meis (caps. VIII a XVI). Temos, então, três vidas diferentes, três biografias em uma mesma personagem, que geram três histórias e três romances distintos, sendo que o primeiro contém os outros dois em sucessão.
⠀⠀⠀O primeiro romance, a história do jovem Mattia, segue o modelo do romance idílico-familiar no qual são exaltados os valores familiares, a vida do campo, a repressão do Eros e a honestidade que governavam um mundo interiorano no final do século XIX e que já demonstrava estar em fase de dissolução.
⠀⠀⠀O segundo, a história de Adriano Meis, é permeado pela vida na cidade, pela modernização que começara a ocorrer no início do século XX e apontava para uma dissolução ainda maior, mais profunda e objetiva na medida em que levava a um anonimato relativo. Seria possível dizer que este segundo romance é um romance de formação (bildusgsroman) no modelo de Os anos de aprendizado de Wilhem Meister, de Goethe, ou A montanha mágica, de Thomas Mann, porém, a formação tentada por Adriano Meis, cujo sobrenome liga-se diretamente ao do herói de Goethe, fracassa inapelavelmente e tende a demonstrar a impossibilidade de uma formação individual, tornando o protagonista um sobrevivente de si mesmo, que acabou sendo educado para a não-vida e não para a vida. A impossibilidade de formação de Adriano Meis é também a impossibilidade de construção de uma narrativa nos modelos românticos no caótico século XX.
⠀⠀⠀O terceiro romance, que contém os outros dois, é uma espécie de anti-romance localizado num eterno presente, numa suspensão de tempo em que o “falecido” Mattia Pascal renuncia a toda e qualquer possibilidade de vida e não se prende mais ao tempo linear e ao espaço social. Da biblioteca abandonada, entre livros não lidos, ele observa a vida que continua em seu fluxo contínuo sem se preocupar com os habitantes desse “grãozinho de areia ensandecido que gira e gira sem saber por que” (PIRANDELLO, 2007, p. 11).
⠀⠀⠀A idéia de que a vida é fluxo contínuo e se cristaliza na “forma” que assumimos socialmente, ou que os outros nos impõem, é central na poética de Pirandello. Em seu famoso ensaio O humorismo, publicado em 1908 e dedicado “À boa alma de Mattia Pascal”, o autor siciliano afirma que “pensamos, agimos e vivemos segundo esta interpretação fictícia e sem dúvida sincera de nós mesmos” (PIRANDELLO, 1996, p. 156) e que a realidade é caracterizada pela lei da pluralidade extremamente relativa, baseada na decadência e na divisão do eu e na não univocidade.
⠀⠀⠀Desta maneira, Mattia Pascal é, simbolicamente, a representação do drama existencial de todo o homem que vai pela vida à procura de uma dimensão e de uma identidade pessoal que consista em algo de verdadeiro e tangível, que não seja apenas “forma”, mas substância. Contra sua vontade, ele descobre que as convenções sociais das quais quer se libertar são vinculantes e insubstituíveis e, por isso, é completamente inútil que o homem tente se realizar plenamente, uma vez que jamais conseguirá fugir às normas e regras que, apesar de condicioná-lo fortemente, são indispensáveis à sua existência. A conseqüência imediata é a constatação de que o homem é solitário, pura “forma” que existe apenas em virtude de elementos e fatores completamente estranhos à sua realidade e está sempre envolvido na perene e inútil busca de si mesmo. Cercado e oprimido por formas de vida insinceras e falsas, Mattia Pascal procura se libertar de todo e qualquer tipo de relacionamento e convenções sociais, mas a sua vã tentativa resulta na consciência de que a fuga da “forma” é impossível e a procura da liberdade não é mais do que uma ilusão passageira. Não lhe resta mais nada do que voltar para seu mundo, aceitar as convenções sociais que tentara infringir, homenagear a si mesmo levando flores a seu próprio túmulo e relatar sua história que considera “deveras estranha e capaz de servir de ensinamento” (PIRANDELLO, 2007, p.8).
⠀⠀⠀Em 1921, na terceira edição de O falecido Mattia Pascal, Pirandello insere como apêndice a Advertência sobre os escrúpulos da fantasia (PIRANDELLO, 2007, pp. 202-207), que já havia publicado com o título Os escrúpulos da fantasia na revista “Idea Nazionale”, no mesmo ano em que comenta uma notícia publicada pelo jornal “Corriere della sera”, em 27 de março de 1920, com a manchete: “A homenagem de um vivo a seu próprio túmulo”. É uma espécie de justificativa dos aspectos mais extravagantes e complexos deste romance. O grande debate causado na Itália, sobre a verossimilhança dos fatos narrados, talvez tenha influenciado Pirandello a inserir este apêndice como forma de reiterar aquilo que todos já sabiam, ou seja, que arte e vida são autônomas e incomparáveis.
PIRANDELLO, Luigi. O falecido Mattia Pascal. Trad: Francisco Degani. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.
PIRANDELLO, Luigi. O humorismo. Trad: Dion Davi Macedo. São Paulo: Editora Experimento, 1996.
PIRANDELLO, Luigi. Saggi, poesie e scritti varii. Milano: Mondadori, 1977.
PIRANDELLO, Luigi. O falecido Mattia Pascal. Translation from Francisco Degani; Rômulo Antonio Giovelli. 1. ed. São Paulo, SP: Nova Alexandria, 2007. ISBN: 9788574921525.