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Título: Cancioneiro

Escritor(a): Francesco Petrarca

Tradutor(a): José Clemente Pozenato

Informações sobre a obra

Verbete

Cancioneiro

Por Laura Couto

setembro/2025



⠀⠀⠀Publicado em 2014, em coedição pela Editora da Unicamp e pela Ateliê Editorial, o Canzoniere de Francesco Petrarca (1304–1374) recebeu de José Clemente Pozenato uma tradução que se consolidou como marco na recepção petrarquiana em língua portuguesa, pois foi a primeira tradução integral do Canzoniere feita no Brasil. O volume veio preencher uma lacuna editorial, já que, como observa o próprio tradutor, “apesar da importância fundamental de Petrarca para a formação da tradição lírica de língua portuguesa, a começar por Sá de Miranda e Camões, não havia ainda uma versão integral de suas Rimas para a nossa língua”. (Pozenato, 2014, p. 32)

⠀⠀⠀José Clemente Pozenato (1935–2021) foi escritor, professor e tradutor, reconhecido tanto por sua obra romanesca, entre a qual se destaca O Quatrilho (1985), adaptado para o cinema em 1995, quanto por sua atuação crítica e cultural. Seu interesse pelos clássicos italianos o levou também a Dante, de quem traduziu o Canto I do Inferno, publicado em 2021 como parte das celebrações do sétimo centenário da morte do poeta florentino.

⠀⠀⠀Na introdução do Cancioneiro, Pozenato explica que a tradução foi, antes de tudo, uma forma de leitura intensiva: “traduzir é uma forma de ler a fundo, de penetrar nos meandros mais secretos da construção de um poema, uma forma muito especial do prazer da leitura. Dito de modo direto e sem disfarces: traduzi Petrarca porque descobri um gosto particular na sua poesia” (Pozenato, 2014, p. 32). Reconhecendo a impossibilidade da fidelidade absoluta, afirma ter escolhido o caminho mais difícil: “Outro caminho ainda, também cheio de desafios, seria o de traduzir Petrarca para o português mantendo-se, o quanto possível, a fisionomia petrarquiana de sua poesia nas duas dimensões: a da forma e a do conteúdo. Ou, para usar os conceitos mais precisos de Peter Newmark, além do nível textual há a considerar, na tradução literária, também o nível da referência factual e cultural, o da coesão semântica e emocional e, por fim, o da impressão de naturalidade do texto traduzido. Não é preciso dizer que optei por esta última via, áspera e pedregosa.” (Pozenato, 2014, p. 33).

⠀⠀⠀No mesmo texto, chama atenção para os limites concretos impostos pelas línguas: “as palavras em português são mais longas que em italiano: coração tem três sílabas, core, na forma arcaica de Petrarca, apenas uma. Isso, em resumo, significa que num verso de dez sílabas Petrarca consegue pôr em média seis vocábulos. Em português cabem, em média, quatro” (Pozenato, 2014, p. 33). Essa constatação revela a dimensão prática das dificuldades e as adaptações necessárias para que a tradução preservasse ritmo e sentido.

⠀⠀⠀Esse esforço é reiterado pelo próprio tradutor em seu depoimento no projeto Desarquivando Traduções (NECLIT), publicado em 2024. Pozenato recorda sua trajetória como professor de literatura italiana e o impulso de trazer para o português a musicalidade de Petrarca: “acabei me interessando em trazer para o português a versão de poetas italianos, procurando encontrar o sabor em português da poesia original. E o primeiro poeta que eu traduzi, que comecei a traduzir, foi Francesco Petrarca.” (Pozenato, 2024, s/p). Ressalta que, ao contrário de traduções anteriores, sua prioridade foi respeitar a musicalidade que estrutura a obra: “porque na época em que ele escreveu [Petrarca], a poesia era escrita para ser lida em público. Então a preocupação de Petrarca era essa. E nas traduções que encontrei, nas paráfrases de Camões e outras traduções, não percebia esse respeito por essa intenção do poeta” (Pozenato, 2024, s/p).

Pozenato enfatiza ainda as modulações rítmicas do texto italiano, que buscou conservar em sua versão: “ele [Petrarca] faz uma poesia com versos modulados, que não têm sempre a mesma cadência, como ocorre um pouco na tradição da poesia de língua portuguesa, da lírica camoniana, da lírica parnasiana. Ele faz uma poesia com modulações, com acentos que variam de posição, não é só sexta e décima, sexta e décima, pode ser quarta, oitava e décima” (Pozenato, 2024, s/p).

⠀⠀⠀O prefácio de Armindo Trevisan reforça a relevância do trabalho, destacando a busca por uma naturalidade coloquial e musical: “Pozenato, primeiramente, procurou embeber-se do estilo petrarquiano. A seguir, tentou algo dificílimo: encontrar uma espécie de coloquialidade, que fosse capaz de preservar a musicalidade do idioma original, sua doçura acústica e, a par dela, certa ‘pseudononchalance’ que é, na verdade, uma naturalidade disfarçada” (Trevisan, 2014, p. 21). Para Trevisan, o mérito maior esteve em “trazer os poemas de Petrarca ao nosso tempo” (Trevisan, 2014, p. 21), preservando rimas e musicalidade: “as rimas de Pozenato, ao contrário, são, por vezes, de um frescor de hortaliças trazidas da própria horta” (Trevisan, 2014, p. 23).

Assim, tanto a palavra do tradutor, em sua introdução e em seu depoimento audiovisual, quanto a avaliação crítica de Trevisan (prefácio) convergem em reconhecer o Canzoniere traduzido por Pozenato como uma realização que alia rigor, musicalidade e frescor. Trata-se de uma tradução integral que garantiu ao leitor brasileiro acesso à totalidade da obra e reafirmou, em língua portuguesa, a vitalidade da poesia petrarquiana.

⠀⠀⠀Mais do que um exercício de transposição linguística, a tradução de Pozenato revela-se como gesto cultural de grande alcance: aproxima a lírica do século XIV de um público contemporâneo, sem despojá-la de sua complexidade histórica e formal. O compromisso do tradutor em recriar a musicalidade e as modulações métricas do original demonstra não apenas habilidade técnica, mas também uma sensibilidade literária cultivada em sua experiência como romancista e professor. Ao insistir na integralidade da obra, Pozenato oferece ao leitor brasileiro uma visão contínua do itinerário amoroso e espiritual de Petrarca, possibilitando uma leitura que vai além da seleção ou do fragmento, e que valoriza o movimento interno da obra como narrativa lírica.

⠀⠀⠀Dessa forma, a tradução de José Clemente Pozenato do Canzoniere se afirma como uma das mais significativas realizações no campo da poesia traduzida no Brasil. Ela articula erudição e prazer, rigor e sensibilidade, tradição e atualidade. Ao unir texto, crítica e depoimento, constitui um testemunho exemplar do lugar que a tradução literária pode ocupar: não apenas como mediação entre línguas, mas como gesto humanista, que resguarda e renova, no presente, a voz de um dos maiores poetas da história.



Referências

POZENATO, José Clemente. Introdução. In: PETRARCA, Francesco. Canzoniere. Tradução de José Clemente Pozenato. Campinas: Editora da Unicamp; Cotia: Ateliê Editorial, 2014.

POZENATO, José Clemente. Depoimento em vídeo. Projeto Desarquivando Traduções (NECLIT). Publicado em: YouTube, 11 dez. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gzQhS3Ra_G8.

TREVISAN, Armindo. Petrarca: o poeta que nunca morreu. Prefácio. In: PETRARCA, Francesco. Canzoniere. Tradução de José Clemente Pozenato. Campinas: Editora da Unicamp; Cotia: Ateliê Editorial, 2014.



Referência

PETRARCA, Francesco. Cancioneiro. Tradução de José Clemente Pozenato. 1. ed. Cotia, SP: Ateliê EditorialCampinas, SP: Editora da UNICAMP, 2014.


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