Por Laura Couto
setembro/2025
⠀⠀⠀Publicado em 2023 pela Penguin/Companhia, Na Terra e no Céu: 84 sonetos de amor para Laura oferece ao leitor brasileiro oitenta e quatro sonetos extraídos do Canzoniere de Francesco Petrarca (1304–1374), em tradução de Sergio Duarte.
⠀⠀⠀O Canzoniere, originalmente intitulado Rerum vulgarium fragmenta, é uma coletânea de 366 poemas, sendo a maioria sonetos, compostos ao longo de toda a vida de Petrarca. Neles se desenha a figura de Laura, amada idealizada que se tornou símbolo da lírica amorosa moderna, dividida entre os poemas escritos em vida e após a morte da musa. A tensão entre desejo e recusa, corpo e espírito, pecado e redenção estrutura um conjunto que exerceu influência decisiva na tradição poética europeia, ecoando em autores como Camões, Ronsard, Shakespeare e, muito mais tarde, em poetas brasileiros. Mais do que um registro de paixão não correspondida, o livro é uma meditação sobre a condição humana, sobre o tempo e sobre os limites da experiência amorosa, que oscila entre memória e expectativa de transcendência.
⠀⠀⠀Sérgio de Queiroz Duarte (1934–2024) foi diplomata de carreira, com quase cinco décadas de atuação no Itamaraty e passagens em importantes representações brasileiras no exterior. Destacou-se em funções ligadas ao desarmamento nuclear, presidindo em 2005 a Conferência de Revisão do Tratado de Não Proliferação e exercendo, entre 2007 e 2012, o cargo de Alto Representante da ONU para Assuntos de Desarmamento. Faleceu em julho de 2024, em Belo Horizonte, deixando um legado que une diplomacia e literatura. O tradutor, então, aproxima-se do universo petrarquiano como leitor apaixonado e admirador da lírica renascentista. Não se apresenta como filólogo ou italianista, mas como alguém que cultiva a forma fixa do soneto e a musicalidade da língua. Em sua introdução, reconhece ser um “diletante da poesia”, o que confere à tradução uma tonalidade particular, marcada pelo entusiasmo e pelo desejo de partilhar com outros leitores o encantamento de Petrarca. Seu projeto tradutório busca respeitar as regras rígidas do soneto petrarquiano, conservando o decassílabo e reproduzindo os esquemas de rimas originais. Essa escolha confere às versões uma cadência próxima à do texto de partida, embora imponha, por vezes, o sacrifício de imagens e alusões, modificadas ou omitidas em nome da métrica e da rima. O resultado é uma tradução que se pretende fiel ao espírito da poesia petrarquiana mais do que à sua literalidade, privilegiando a sonoridade e a forma como canais de transmissão da experiência estética.
⠀⠀⠀Ainda que o ambiente diplomático parecesse distante da atmosfera lírica petrarquiana, Duarte aliou sua formação técnica a um entusiasmo poético inesperado: este é, ao que se sabe, o único livro de poesia traduzida que publicou. Em suas próprias palavras da introdução, põe-se não como especialista, mas como leitor e amante das formas tradicionais: “O tradutor dos sonetos contidos no presente volume tampouco pretende possuir qualquer das competências alinhadas por esse seu antecessor; é apenas um diletante da poesia, admirador da lírica renascentista e amador da língua italiana e da sua própria, além de apreciador da forma clássica do soneto. Neste trabalho buscou sobretudo incorporar nas traduções, quando factível, a maior parte dos elementos do original, sem descuidar da linguagem poética e procurando, quando possível, utilizar os efeitos de som e de musicalidade proporcionados pela origem comum das línguas italiana e portuguesa. Além disso, preocupou-se constantemente em respeitar com rigor as regras formais do soneto petrarquiano, mantendo a métrica decassilábica e reproduzindo o esquema de rimas utilizado por Petrarca em cada um dos poemas. As limitações impostas pela rigidez formal do soneto não raro acarretaram a necessidade de excluir ou de modificar algumas das imagens e alusões usadas por Petrarca. Por esse motivo nem sempre foi possível manter inteira correspondência ao original. Os erros e as imperfeições dessas traduções devem ser exclusivamente imputados a difetti d’arte do próprio tradutor. Embora o resultado não possa ser considerado perfeito, resta-lhe a satisfação de haver percorrido, ao menos em parte, a extraordinária trajetória de um amor que, nascido na Terra, perdura eternamente no Céu.” (Duarte, 2023, p. 13-14)
⠀⠀⠀Essa afirmação honesta e quase tocante revela a motivação singela do tradutor: aproximar leitores brasileiros da beleza petrarquiana por meio de um gesto de respeito formal e estético, ainda que marcado por imperfeições humanas.
⠀⠀⠀A seleção dos oitenta e quatro sonetos obedece ao critério pessoal do tradutor, que escolheu aqueles que, a seu ver, melhor expressam os sentimentos contraditórios do poeta diante de Laura: o fascínio diante da beleza, a alegria efêmera de um olhar, a dor da ausência, a desesperança e, finalmente, a sublimação espiritual que culmina na promessa de reencontro após a morte. O título da edição, Na Terra e no Céu, sintetiza esse percurso que vai da Laura terrena à Laura celeste, sinalizando a oscilação entre experiência concreta e idealização etérea.
⠀⠀⠀No cenário editorial, a tradução de Duarte se soma a outras versões em português que buscaram recriar o Canzoniere. No Brasil, Jamil Almansur Haddad publicou sua tradução em 1993, e José Clemente Pozenato ofereceu uma versão integral em 2014; em Portugal, Vasco Graça Moura apresentou sua leitura em 2003. Cada uma dessas experiências traz uma abordagem própria, do rigor filológico à liberdade criativa, e a de Duarte se distingue pelo apego à forma métrica e pela tentativa de oferecer ao leitor brasileiro um contato com o rigor do soneto petrarquiano. A publicação pela Penguin/Companhia amplia ainda mais o alcance da obra, inserindo Petrarca num catálogo de referência que atinge tanto leitores especialistas quanto aqueles que se aproximam da poesia pela primeira vez.
⠀⠀⠀Por sua data recente, a recepção crítica da tradução ainda é limitada, mas a obra tende a estimular debates sobre os rumos da tradução poética no Brasil e sobre o lugar de Petrarca na tradição literária nacional. Sua presença em coleção de grande circulação garante ao poeta um espaço de destaque no imaginário contemporâneo e reafirma a vitalidade do petrarquismo em tempos de reconfiguração do cânone. Se outras versões procuraram a erudição ou a recriação literária, a de Duarte aposta na musicalidade e no rigor formal como pontes para transmitir, em português, a intensidade de um amor que nasceu na Terra e continua a vibrar no Céu.
DUARTE, Sergio. Introdução. In: PETRARCA, Francesco. Na Terra e no Céu: 84 sonetos de amor para Laura. São Paulo: Penguin/Companhia, 2023.
PETRARCA, Francesco. Na Terra e no Céu: 84 sonetos de amor para Laura. Tradução de Sergio Duarte. São Paulo: Penguin/Companhia, 2023.
PETRARCA, Francesco. Na terra e no céu: 84 sonetos de amor para Laura. DUARTE, Sergio (org). Tradução de Sergio Duarte. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das LetrasSão Paulo, SP: Penguin- Companhia, 2023.