Por Francisco Degani
Novembro/2024
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀Não nos esqueçamos de que o impulso do Ressurgimento italiano teve na literatura um único eco realmente poético: e são os dias aventurosos do Carlino de Nievo. (Italo Calvino, 2009, p. 35)
⠀⠀⠀O escritor, poeta, jornalista, dramaturgo e soldado Ippolito Nievo nasceu em Pádua, em 1831, em uma família da baixa nobreza, e passou a infância em Udine, alternando as temporadas na cidade com as férias no castelo de Colloredo di Montalbano, pertencente ao avô materno, o qual provavelmente serviu de modelo para o castelo de Fratta de seu maior romance As confissões d’um italiano. É também baseado nas memórias do avô, que havia assistido pessoalmente à decadência da República de Veneza e participado, na qualidade de patrício com direito a voto, da última sessão do Conselho Maior, em 12 de maio de 1797, que Nievo reconstitui, no mesmo livro: a história veneziana e a aspiração por uma Itália unida, livre e independente. Lê-se na abertura da obra:
"Eu nasci veneziano, em 18 de outubro de 1775, dia do evangelista são Lucas; morrerei pela graça de Deus italiano, quando quiser aquela Providência que governa misteriosamente o mundo." (Nievo, 2024, p. 20)
⠀⠀⠀Escrito entre o final de 1857 e a primeira metade de 1858, o romance não conseguiu ser publicado pelo autor antes de sua morte (4/5 de março de 1861). A obra só foi publicada postumamente, em 1867, pelo editor florentino Le Monnier que, além de mudar o título para As confissões de um octogenário, efetuou numerosas correções ortográficas, lexicais e sintáticas no manuscrito original, pois a curadora da edição e amiga de Nievo, Erminia Fuà Fusinato, achou necessário adequar o texto ao modelo linguístico proposto na edição de 1840 de Os noivos, de Alessandro Manzoni. O título original As Confissões d’um italiano só seria retomado na segunda edição de 1899, ao passo que o texto original só seria reconstituído integralmente nas edições organizadas por Sergio Romagnoli, em 1952 e 1990, e por Simone Casini, em 1999.
⠀⠀⠀O protagonista Carlino Altoviti, um homem de oitenta e três anos, aproximando-se da morte, resolve contar sua vida com o declarado objetivo de oferecer às novas gerações o testemunho de “dois séculos que serão um tempo muito memorável sobretudo na história italiana” (Nievo, 2024, p.21). O romance se passa entre o ano de nascimento de Carlino, 1775, e o ano em que este é escrito, 1858, misturando as experiências pessoais do protagonista e autor com a história italiana desde o final do ancien régime, até chegar às portas da Unificação. Contando com apenas 27 anos quando do início da escrita, Nievo vai buscar na visão do avô materno, Carlo Marin, o argumento e as considerações sobre os acontecimentos históricos não vividos por ele, tornando o romance em uma obra histórica supostamente autobiográfica baseada na memória de dois indivíduos, com o relativo grau de incerteza e de opinião da lembrança reconstruída.
⠀⠀⠀O crítico Pier Vincenzo Mengaldo considerou o romance articulado em três grandes blocos que fazem correspondência entre as fases da vida de Carlino (infância, juventude e maturidade) com momentos da história italiana (o antigo regime, a era das revoluções, a Restauração e as primeiras rebeliões ressurgimentais).
⠀⠀⠀O primeiro bloco (cap. I-VII) é ambientado no Friuli ainda arcaico e feudal dos anos que antecedem e acompanham a revolução francesa. Carlino, órfão de mãe e abandonado pelo pai, é acolhido pelo tio, conde no castelo de Fratta, onde passa a maior parte do tempo na companhia dos criados, podendo observar sem ser visto a vida do velho mundo feudal. A narração concentra-se quase que exclusivamente nos fatos da infância de Carlino e na enorme devoção que ele dedica a Pisana, a mimada filha dos condes de Fratta, e sua prima, que estará a seu lado por toda a vida. Interessante notar a representação do Eros infantil e da psicologia das crianças, o que chegou a causar censura ao romance. Também interessante é a utilização do espaço da cozinha do castelo como microcosmo da sociedade feudal e, portanto, dos valores decadentes do ancien régime.
⠀⠀⠀A segunda parte do romance (caps. VIII-XVIII) inicia-se com a partida de Carlino para a Universidade de Pádua e a notícia da decapitação de Luís XVI. A narração é recheada de eventos públicos e privados e caracterizado por mudanças geográficas contínuas. O protagonista acompanha os acontecimentos gerados pela chegada de Napoleão à Itália: a queda da República de Veneza e sua cessão à Áustria com o tratado de Campoformio; a constituição das repúblicas Cisalpina e Romana; a revolução napolitana de 1799; a resistência republicana de Gênova assediada pelos austríacos; a proclamação, em 1805, do Reino da Itália. Nesse período, a vida pessoal de Carlino é marcada principalmente pela sua relação com Pisana, em que se alternam separações e reconciliações.
⠀⠀⠀O terceiro bloco (cap. XVIII-XXIII) cobre um tempo muito maior do que os anteriores (1800-1858). Estamos na maturidade do protagonista que volta para Fratta acompanhado de Pisana, depois da proclamação do Reino da Itália, e é convencido por ela a se casar com Aquilina, com quem terá quatro filhos. A relação amorosa de Carlino com Pisana, no entanto, não termina aí. Em 1820, Carlino participa das insurreições meridionais ao lado do general Guglielmo Pepe: é capturado e aprisionado na ilha de Ponza onde perde a vista, depois é mandado em exílio para Londres. Pisana vai com ele a esta cidade para ajudá-lo a se curar e chega até a pedir esmolas pelas ruas da cidade.
⠀⠀⠀Os três capítulos finais, que poderiam formar um quarto bloco, contam a história da reconstrução da Itália em que Carlino, já velho, participa da insurreição veneziana de 1848 e assiste do observatório de Fratta a preparação da Unificação italiana, esperando a morte, “mais contente do que resignado” (Nievo, 2024, p.779), mas também o destino dos filhos que teve com Aquilina, Luciano e Donato, que participaram dos eventos relativos à independência da Grécia, e Giulio que se aventurara na América do Sul.
⠀⠀⠀É difícil classificar As Confissões em apenas um gênero narrativo. Em primeiro lugar, trata-se de um romance histórico, já que reconstrói um século da vida italiana, mas, com relação aos modelos então existentes – sobretudo os de Walter Scott e Alessandro Manzoni – existe pelo menos uma diferença fundamental: o romance não se localiza em um passado distante que permite um distanciamento histórico dos fatos a serem narrados. Diferentemente do famoso romance de Manzoni, Nievo inicia seu romance explorando uma parte da história recente e ainda incompleta, que terá sua conclusão após o final do livro. Por outro lado, a história é contada por um jovem que se coloca na pele de um protagonista octogenário, que viveu parte desta história e a julga através da ótica do presente e de suas esperanças quanto ao destino da Itália. Talvez por isso, Nievo tenha se referido às Confissões como o seu “romance contemporâneo”, o que já demonstra como ele o considerava inovador e original dentro do gênero histórico. Além disso, é a primeira vez dentro do romance histórico em que o narrador também é protagonista, o que faz com que este tipo de narrativa ganhe um cunho memorialista e autobiográfico. Enquanto Manzoni e outros autores da época garantiam a autenticidade da história narrada através de fontes e documentos históricos (manuscritos descobertos, narradores anônimos etc.), Nievo utiliza o testemunho de Carlino que, na narrativa, assistiu pessoalmente aos eventos, e a memória do leitor da época que conhece esses eventos por sua atualidade. Essa mistura de gêneros dá vida nova ao romance histórico oitocentista e resgata os memorialistas do século anterior. Utilizando a voz de Carlino e não mais um narrador onisciente, Nievo coloca o narrador no mesmo plano do leitor e, para isso, precisa falar diretamente a este usando formas coloquiais, próximas ao discurso oral.
⠀⠀⠀Assim, o autor “passeia” entre ficção, memória e história na confecção de uma obra que pode ser muito esclarecedora em relação aos acontecimentos que levaram à Unificação italiana, pois não se detém simplesmente na historiografia consagrada pelos manuais, uma vez que insere o ponto de vista de quem viveu esta história, parte por meio das memórias do avô, Carlo Marin, para o argumento e as considerações sobre os acontecimentos históricos não vividos por ele, e parte por sua participação ativa nos eventos relatados.
⠀⠀⠀Ao mesmo tempo em que Nievo tece esse fascinante jogo memorialista entre “passado do futuro” e “futuro do passado”, que de alguma forma representa o “tempo presente”, ele alinhava uma trama fictícia que conduz o romance, na qual a história dos encontros e desencontros entre Carlino e a Pisana desenvolve também historicamente, as relações sociais e os usos e costumes da época. Porém, a relação de Carlino e Pisana não se resume a um fio condutor romântico, é também a história da formação dos personagens, não apenas uma formação pessoal, mas uma formação como cidadãos úteis à sociedade em transformação da época. O romance histórico, memorialista, autobiográfico ganha então uma nova faceta, a do romance de formação, que vai além da premissa social de Goethe e do Bildungsroman, uma vez que percorre todo o arco da vida dos personagens, sempre inseridos na perspectiva histórica.
CALVINO, Italo. “Natureza e História no romance”. In Assunto encerrado. Trad. Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NIEVO, Ippolito. As confissões d’um italiano. Trad. Francisco Degani. São Paulo: Nova Alexandria, 2024.
NIEVO, Ippolito. As confissões d'um italiano. Translation from Francisco Degani. 1. ed. São Paulo, SP: Nova Alexandria, 2024. ISBN: 9788574925080.
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