Por Sergio Nunes Melo
Dezembro/2025
⠀⠀⠀Purgatório é o segundo cântico da Divina Comédia, originalmente intitulada apenas Comédia, poema narrativo composto por Dante Alighieri aproximadamente entre 1308 e 1321, exilado de Florença durante seus últimos anos de vida. A trama que o condenou por corrupção em 1302 era padronizada e visava a eliminação total dos adversários políticos da facção hegemônica no poder, os guelfos negros, composta por nobres apoiadores do papa. Ocupando um cargo político muito importante e sendo membro da facção oposta, os guelfos brancos, constituída por comerciantes que apoiavam discretamente o Sacro Império Germânico, Dante se encontrava fora de sua cidade natal na ocasião do pronunciamento da sentença. Por esta razão, foi declarado réu confesso. As acusações que culminaram com sua exclusão de Florença, além do confisco de suas propriedades, não passaram de pretextos jurídicos com o objetivo de silenciamento do dissenso. Visto que Dante se recusou a pagar uma multa vultuosa, sua sentença foi acrescida de pena de morte na fogueira caso retornasse. O Sommo Poeta (Poeta Supremo), alvo irrenunciável do poder constituído, recorreu e foi ignorado. A Divina Comédia surgiu, portanto, da perspectiva de um homem maduro injustiçado, magoado e sem morada fixa, peregrinando por várias cidades italianas.
⠀⠀⠀Contrariando a tendência da época de se produzir literatura em latim, a língua culta vigente, Dante concebeu sua obra-prima em dialeto florentino. Além da provável saudade da língua viva em seu ambiente natural, Dante estava consciente de que, com mais de mil cidades-estados, dificilmente a Itália desenvolveria um idioma que contemplasse todas as unidades políticas, ao contrário do que vinha acontecendo na vizinha França, em que a corte parisiense irradiou o idioma oficial a todo o território nacional. Escrever no dialeto florentino em hendecassílabos, isto é, versos de onze pés métricos, e rimas era uma ação visionária que, conferindo acesso à obra para além do circuito de privilegiados que podiam ler latim, demonstrava como a discriminação entre dialetos e línguas é uma questão política e como um dialeto pode ser objeto de interesse fora de seu território nativo quando trabalhado à exaustão pelo pensamento. O gesto de elevação da língua vulgar a veículo de expressão artística de excelência foi seguido por seus concidadãos da geração seguinte: Petrarca e Boccaccio. O legado linguístico destes poetas exerceu um impacto tão significativo que, a partir da unificação italiana em 1861, o dialeto florentino se tornou a base da língua italiana oficial.
⠀⠀⠀Celebrada em sua própria época, a Divina Comédia, entendida como explicitamente de cunho teológico, foi perdendo leitores em proporção direta ao avanço do Iluminismo, que retirou o sagrado da centralidade da existência em prol da razão humana como bússola civilizacional. Restrita a poucos interessados na maior parte do século XVII, a obra-prima dantesca foi sendo redescoberta pelos Proto-românticos até ser adotada como fonte de inspiração pelo Romantismo. No século XX, a valorização da Divina Comédia ganhou novo impulso – desta vez por iniciativa de literatos como Ezra Pound e T. S. Eliot, tornando-se tema de estudo nas escolas superiores italianas e sendo radicalmente retomada entre leitores de outras línguas. Assim, no século passado, a Divina Comédia se tornou abrangente ao ponto de ser praticamente universal e foi reverenciada por monstros sagrados do meio literário da época. Por exemplo, aderindo aos prestigiosos redescobridores anglófonos da obra, Eugenio Montale afirmou que, em comparação a Dante, ninguém é poeta; e Samuel Beckett nela se inspirou para compor vários de seus textos. Hoje, o Index Translationum registra 419 traduções da Divina Comédia no mundo.
⠀⠀⠀É sobretudo pela abrangência temática e pela exemplaridade estética que a Divina Comédia vai impelindo novas traduções, tais como a aqui apresentada, da autoria de Maria Teresa Arrigoni e Silvana de Gaspari, professoras de língua e literatura italiana da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e que já haviam traduzido o Inferno, o primeiro cântico do poema, publicado pela EDUFSC (Editora da UFSC) em 2023. Com o intuito de resgatar a primeira tradução brasileira da Divina Comédia, assinada por Francisco Bonifácio de Abreu, o barão de Vila da Barra, publicada postumamente em 1888, o projeto, em sua fase inicial de execução, propunha-se a adaptar o texto pré-existente através de uma atualização da linguagem do século XIX, a fim de tornar a obra mais palatável para os leitores do século XXI. Afinal, como o organismo que efetivamente é, a língua, além de um sistema mais ou menos fixo, está subordinada a uma deriva inescapável. Imersas no processo, no entanto, as tradutoras foram levadas a adentrarem um percurso imprevisto. Identificaram a ausência de alguns versos na tradução de base, os quais foram reintroduzidos no texto final. Com foco na recepção de um leitorado distante sete séculos da matriz cultural que gerou a obra, também introduziram notas de pé de página com o objetivo de esclarecimento de referências cruciais para a compreensão do contexto do qual emergem. Estas notas são propositalmente sucintas de modo a serem informativas sem competirem com a leitura do poema.
⠀⠀⠀Dado o volume da obra, fator que aumenta o grau de dificuldade de transposição de um sistema linguístico para outro, as tradutoras optaram por versos sem rimas e sem métrica rígida com o intuito de priorizarem o sentido original. Cada um dos cantos é precedido por um resumo em prosa do punho de Francisco Bonifácio de Abreu. O livro conta ainda com três textos de apoio, dois elementos pré-textuais e um pós-textual: um ensaio introdutório assinado pelas tradutoras, apresentando o autor, bem como discorrendo sobre vários aspectos da obra e da empreitada de traduzi-la; a tradução de um ensaio crítico de Benedetto Croce cujo ponto principal é a atualidade de Dante; e brevíssimos currículos das tradutoras. Em contraste com o texto base, a tradução atual mantém os nomes de personagens como no original, preservando, assim, a italianidade inerente à obra.
⠀⠀⠀Quase vai sem dizer que particularidade e universalidade não são conceitos mutuamente excludentes, mas complementares, pois o particular é uma versão do universal; enquanto o universal é uma síntese dos particulares. Ao retratar o Purgatório com seu imaginário enraizado num mundo concreto, o da Florença de onde foi exilado, Dante iluminou a relação de mistério entre Deus, o mundo e o homem. Ao articular não apenas o conhecimento das escrituras sagradas, mas também os insumos teológicos, tanto da Idade Média quanto da Antiguidade, abarcando referências que vão de Platão, Aristóteles e Santo Agostinho a São ⠀⠀⠀Tomás de Aquino e às ordens religiosas que vinham se organizando, Dante foi muito além da operação de colagem cumulativa, fazendo convergir todos os insumos de seu vasto conhecimento numa concepção original do ponto de vista teológico, ainda que a Divina Comédia, via de regra, não seja tema da Teologia propriamente dita.
⠀⠀⠀É do imaginário manifesto na Divina Comédia que vêm nossas primeiras visualizações do mundo de além tumba, sobretudo do inferno. No Purgatório, Dante é guiado por Virgílio que, apesar de não ter sido o primeiro poeta a criar um poema narrativo ambientado no além, é o modelo elegido por Dante, o qual, enquanto um homem vivo, com autorização especial, prossegue na jornada de conhecimento de um mundo transitado apenas pelos mortos iniciada no Inferno. O poeta florentino percorre, em trinta e três cantos, acompanha o expurgo dos sete pecados capitais pelos espíritos em busca de ascensão. Ao contrário do inferno, ambiente tenebroso, inóspito e inescapável, o purgatório é luminoso, fértil e promissor. As fases ascendentes no purgatório estão distribuídas de acordo com a gravidade de cada pecado capital a ser purificado. Cada purgação torna o espírito mais leve para a subida à próxima fase. No antepurgatório, encontram-se: os espíritos que se arrependeram de seus pecados somente no fim da vida, ou seja, tarde demais para que o arrependimento tivesse efeito sobre o sentido daquela vida; os negligentes – espíritos que não agiram à altura do poder que tiveram; e os excomungados pela Igreja. Nas três primeiras fases, encontram-se os pecados mais graves, pois se consolidaram através do mal dirigido ao próximo: a soberba, a inveja e a ira. Na quarta fase, localiza-se o pecado de gravidade média, na medida em que se constituiu por um exercício pouco vigoroso do bem: a preguiça. Nas quinta, sexta e sétima fases, estão os pecados mais leves, nos quais o amor divino foi sobrepujado pelo amor aos bens terrenos: em par por oposição, a avareza e a prodigalidade – este acrescentado por Dante como complementar daquele; a gula; e, por fim, a luxúria. Assim como no Inferno, Dante passa em revista várias personagens da mitologia e da história, identificando e localizando o pecado que precisam purgar. Beatriz, que morrera jovem, assume a liderança da jornada do poeta florentino rumo ao paraíso, pois Virgílio, o poeta romano homenageado com a orientação de seu, por assim dizer, discípulo, não pode prosseguir até o Paraíso por não ser batizado, isto é, por não ser cristão.
⠀⠀⠀Diante da reviravolta sofrida por Dante, não é difícil entrever que o exílio é para o Supremo Poeta uma oportunidade imperdível de reconhecimento, tanto no sentido clássico da tragédia de verificação dos erros que levaram à queda, quanto no de redenção no sentido teologal. Se a justiça humana havia falhado clamorosamente, a divina, por ser perfeita e por oferecer muitas oportunidades, não haveria de falhar. Pode-se argumentar que o exílio de Dante foi um purgatório em vida, pois o inferno constituiu-se dos eventos que culminaram com a sentença irrecorrível. Neste sentido, por um lado, a autorrepresentação de Dante no Purgatório sugere com eloquência que o trabalho árduo dedicado à composição do poema lhe serviu como um pedido de misericórdia. Por outro lado, considerando-se a glória que alcançou, a obra foi também a graça concedida em forma de arte.
ALIGHIERI, Dante. Inferno. Tradução de Maria Teresa Arrigoni e Silvana de Gaspari. Florianópolis: EDUFSC, 2025.
ALIGHIERI, Dante. Inferno. Organização e notas de Natalino Sapegno. Firenze, Nuova Italia, 1995. Terceira edição, décima primeira reimpressão.
ALIGHIERI, Dante. Inferno. In Divine Comedy. Tradução de Allen Mandelbaum. New York: Everyman’s Library, 1995.
INDEX TRANSLATIONUM. Disponível em: https://www.unesco.org/xtrans/bsresult.aspx?lg=0&a=dante%20alighieri&stxt=divina%20commedia&fr=10
MONTALE, Eugenio. Dante ieri e oggi. In Sulla Poesia. Organização e notas de G. Zampa. Milano: Mondadori, 1976. p. 9-46.
MONTANELLI, Indro. Dante e il suo secolo. Milano: Rizzolli, 1964.
PETRUCCHI, Giorgio. Vita di Dante. Bari: Laterza, 1986.
ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia: Purgatório.Tradução de Silvana de Gaspari; Maria Teresa Arrigoni. 1. ed. Florianópolis, SC: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina — EDUFSC, 2025.
