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Título: Bella mia

Escritor(a): Donatella Di Pietrantonio

Tradutor(a): Patricia Peterle

Dados sobre a tradução

Dados do(s) original(ais)

  • Título original: Bella mia
  • Tradução completa da(s) obra(s)
  • Idioma(s) da obra traduzida: Italiano

Descrição

Verbete

Traduzir o indizível da perda: Bella mia

Por Patricia Peterle

Dezembro/2025



⠀⠀⠀Uma história impactante que tira o fôlego do leitor, combinada com uma linguagem seca e essencial, são as primeiras coordenadas do romance Bella mia de Donatella Di Pietrantonio, premiada escritora italiana traduzida para várias línguas. Bella mia é o seu segundo romance, publicado em 2013, que agora chega por aqui. O que fazer quando a vida nos é arrebatada? O que fazer quando a vida singular e a coletiva são arrastadas para o olho do furacão que chega sem pedir licença? O que fazer quando a contingência e o desastre fazem com que uma pessoa passe de um dia para o outro a ter de ocupar o lugar de mãe? Um espaço que até então tinha sido descartado e outros caminhos tinham e estavam sendo trilhados? O que fazer? O que fazer diante do colapso e do indizível da perda? Bella mia é tudo isso e muito mais!


Está sentado no seu lugar com a cabeça cabeluda sobre o prato, o vapor da sopa dilata as espinhas e encurva os pelos longos e sutis que despontam sem projeto, na espera de se tornarem barba. [...] Evita os nossos olhos, sabe que estamos olhando para ele e que contamos as proteínas ingeridas e as que deixa no fundo.

Mastiga silêncio. (DI PIETRANTONIO, 2025, p. 9)


⠀⠀⠀Este é o primeiro parágrafo do livro. Já aqui temos uma pequena amostra do caráter duro da linguagem de Donatella Di Pientrantonio, sem adornos, que crava e finca a palavra: “mastiga silêncio”. O clima ao redor da mesa onde se fazem as refeições traz nas moléculas de ar as tensões que cada um ali presente carrega consigo. Feridas do passado e do presente, feridas físicas e não, feridas que se inscrevem no corpo como cicatrizes abertas e que seguem sendo constitutivas destes mesmos sujeitos. Medos e esperanças, riscos e apostas são também os fios sutis desta trama.

Caterina, irmã gêmea de Olivia, se vê, de um dia para o outro, diante do sobrinho Marco que necessita da sua presença. Caterina é a protagonista narradora que nunca demonstrou ter interesse pela maternidade e já tinha abandonado esta ideia. A irmã Olivia é uma das vítimas do terremoto que atingiu toda a cidade de Áquila, em 2009. Esta cidade vira de repente fantasmática e cheia, pois são agora os destroços das casas e a poeira que a habitam. O que se faz quando os pontos de referência são violentamente arrancados?

A família de Caterina é o centro deste romance: três mulheres (a nonna, as filhas gêmeas e Marco). De uma perspectiva, o que temos são os corpos daqueles que sobreviveram – restos de uma morte que não cessa de não se inscrver em resíduos e objetos – e o corpo da cidade, por sua vez, massacrado. Não há um caminho certo, uma receita, uma diretriz nesta tensa rede de relações, cada um deles terá seus embates para se reencontrar no pós-terremoto.

Bella mia traz uma epígrafe sintomática de Mariangela Gualtieri, uma vez que alude ao que se encontrará em suas páginas. Os versos foram retirados do livro Fuoco centrale [Fogo central] e colocam em cena a dificuldade de se identificar, trazendo a descrição de um corpo minúsculo e o sentido de “pequenez” que não deixa de aludir à protagonista Caterina: “Antes eu era muito / leve, pesava poucos / quilos. Antes havia / só três ou quatro / quilos / de mim, só poucos / quilos de mim, só poucos / quilos tinha o meu / nome.” ((DI PIETRANTONIO,, 2025, p. 7)

Donatella Di Pientrantonio traz em Bella mia um de seus grandes temas que é a maternidade. Neste romance, como ela mesma afirmou em algumas entrevistas, o interesse era explorar uma dimensão da maternidade em que uma pessoa se pode encontrar para além de suas intenções, desejos e vontades, imposições sociais.


⠀⠀⠀Não é meu filho. Marco e eu não nos pertencemos. E se uma gêmea tivesse de morrer, não quis ser eu a testemunha. A loteria do terremoto extraiu casualmente e os separou, Olivia e a sua criatura. Salvou a mim, e às vezes sinto saudades do fim que me foi negado. Não sou mãe, ele não é fruto deste ventre magro. É outro, nascido de uma outra quase igual a mim. Eu não o amo, frequentemente não o amo, quando volto para casa e cheiro sua presença, sinto logo um incômodo no estômago e depois caio sob os disparos de seus olhos. Me assusta, como a enormidade da minha tarefa. Deveria ser sua mãe reserva. Sou, ao contrário, a suplente com a primeira nomeação incapaz de enfrentar a classe turbulenta.

Nenhuma ajuda de Olivia. Não chovem sinais do seu irredutível outro lugar. Fica separada, não lança uma voz neste mundo aquém de vivos abandonados. Perdemos o contato, e ela, a magia. (DI PIETRANTONIO,, 2025, p. 109)


⠀⠀⠀É justamente essa a situação em que se encontra Caterina diante de seu sobrinho Marco, que já é um adolescente. Caterina não vive somente o luto – difícil de aceitar para ela – diante da perda de Olivia, mas precisa lidar com a nova reconfiguração que a morte impõe. Como uma mulher que sempre se sentiu incapaz de cuidar de uma outra pessoa, talvez inclusive dela mesma, consegue tirar de dentro de si forças para lidar com o real que bate à sua porta? Como ocupar o lugar de mãe não se sentindo apta para tal? Ou melhor, recusando este mesmo papel? Talvez aqui tenhamos outra discussão, apontada também por Adriana Cavarero, o fato de a palavra “mulher” evocar por si só a ideia de um destino dentro de um preciso sistema de expectativas, que podem se apresentar com inúmeros disfarces. E ao lado deste aspecto, é possível ainda colocar a relação mãe/filha, entre a nonna e Caterina e, se quisermos, o fio pode ser estendido aos outros personagens que vão aparecendo ao redor deste núcleo central.

Como gerações diferentes respondem e lidam com a dor? A nonna se mostra mais habituada a enfrentar a dor, com sua “casca-dura” mostra uma capacidade de se defender por meio da fé e tenta viver com o devastante luto que é a perda de uma filha. Marco desabafa sua imensa dor num comportamento rebelde, numa espontaneidade violenta, e é o primeiro personagem que aparece no livro. É ele que possui as espinhas, que evita o encontro dos olhos da nonna e da tia, que não tem apetite. É ele, enfim, que “mastiga silêncio”. Silêncio que pode estar para a dor, para o vazio, para as incertezas trazidas por uma situação deste porte, para as infindáveis dúvidas, para a raiva inevitável diante de um mundo que tira o que se ama. O que acontece quando se perde o que se ama?  Esta é uma das perguntas que movem os personagens deste romance.

⠀⠀⠀O corpo diante do trauma fala e se expõe. A protagonista de Bella mia, depois do terremoto, depois de ver o corpo da irmã sendo levado, chega a perder o ciclo menstrual. Os ciclos menstruais das irmãs eram síncronos, como algumas outras sensações, mas desde que Olivia se foi, Caterina diz que nem uma gota de sangue saiu do seu útero. Quais as vias, se há uma possível, para se reconstruir? Caterina é uma ceramista, e seu ateliê terá um papel importante nessa experiência, pois é lá, mexendo na massa do barro, que ela dá vida a duas estátuas gêmeas: “No último momento, escavo com um só golpe da esteca de madeira o grito incessante da boca que eu tinha deixado fechada. Agora está pronta para o forno. [...] O grito é de Olivia. Pensava que fosse meu, mas agora que terminei a mulher, se parece mais com ela”. E, enfim,Coloquei as gêmeas na janela, fechada, para olhar também a parte de trás delas”. (DI PIETRANTONIO,, 2025, p. 180)

⠀⠀⠀Este é o segundo romance de literatura italiana publicado pela Relicário. O primeiro foi Briha como vida de Maria Grazia Calandrone, que também abordava o tema da maternidade, mas a partir de outra perspectiva e de um caso real que tinha ganhado as páginas dos jornais. A partilha de experiências certamente diferentes é um dos elos entre esses dois romances: o abandono de uma criança num parque romano e o terremoto que abala e arrasa a vida dos habitantes de uma cidade. Traduzir Donatella di Pientrantonio foi uma experiência de imersão na sua linguagem literária que é muito singular, a energia que ela coloca em cada palavra é impressionante. Uma leitura que escorre, tem seu próprio fluxo, mas que é marcada por certas escolhas, como sublinhou Walter Siti, as palavras de Donatella di Pietrantonio “têm músculos”. Fico feliz por este livro ter saído por uma editora tão especial para mim como a Relicário, que tem um cuidado único com o processo de produção do livro. Registro, por fim, um agradecimento a toda a equipe da editora e, sobretudo, a Thiago Landi, pela atenção, pela paciência e pelas dicas e sugestões tão preciosas na revisão final do texto.  


Referências

DI PIETRANTONIO, Donatella. Bella mia. Trad. Patricia Peterle. Belo Horizonte: Relicário, 2025.


Referência

PIETRANTONIO, Donatella Di. Bella mia.Tradução de Patricia Peterle. Belo Horizonte, MG: Relicário Edições, 2025.


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