Por Patricia Peterle
Dezembro/2025
Quando traduzo um verso
escuto outra voz
não é minha língua
mas é minha língua
palavras e sons
( .__ --.- __ -. _.__ --_ _----.)
neste encontro do impossível
neste tempo suspenso
acasalamento de vozes
língua penetra na língua, se enroscam.
Quando traduzo um poema
olho o alheio
o acolho
falho numa linguagem
talvez minha
mas
já outra
(Patricia Peterle)
⠀⠀⠀A tradução pode ser pensada como uma terceira via, como esse desenho outro cuja origem tem a ver com a passagem, que é – pelo menos – bifronte. E, nessa terceira via, o ângulo passa a ser aquela figura geométrica, espaço por excelência do cruzamento, encontro e embate das duas linhas. Ponto de articulação, de choque, de contágio necessário para a sua própria formação e existência. Em outras palavras é a relação entre essas duas linhas que possibilita esse tipo de formação.
⠀⠀⠀Não há nenhuma dúvida de que a tradução é uma prática relacional, é uma construção e um acontecimento que se dá pela linguagem, por meio das linguagens expostas neste complexo processo, cuja realização se trava na tensão entre desnudamento e acolhimento.
A mão estendida para um possível aperto é uma imagem de Paul Celan para pensar a poesia. Uma imagem tão simples, cotidiana, mas ao mesmo tempo tão forte por concretizar a ideia de acolhimento de hospitalidade, no toque entre as peles. Retomando agora os versos da epígrafe, podemos entender melhor ou com mais intensidade o que ali está sendo colocado em jogo: “[...] neste encontro do impossível / neste tempo suspenso / acasalamento de vozes / língua penetra na língua, se enroscam [a realização da geometria]. / Quando traduzo um poema / olho o alheio / o acolho / falho numa linguagem / talvez minha / mas / já outra.”
⠀⠀⠀É com essas colocações iniciais que gostaria de compartilhar a experiência da tradução realizada junto com Andrea Santurbano de Notti di pace occidentale de Antonella Anedda, publicado em 1999 pela editora romana Donzelli e recentemente republicado pela Garzanti, que chega agora em 2025 no Brasil pela 7Letras. Para além de ser o livro de uma das mais premiadas e traduzidas poetas italianas hoje, este é um livro emblemático, basta pensarmos no ano de sua publicação: um instante antes do início do novo século. Se no ano 2000, muitas publicações foram feitas na Itália, a partir desse anno zero, para lembrar títulos de duas famosas publicações dedicadas à narrativa e à poesia, o livro de Antonella Anedda não aponta uma confiança no futuro, mas entra com os dois pés no novo século junto com as trevas que marcam o que está se encerrando. Discípula de Primo Levi e de Franco Fortini, reforça, neste que é seu quarto livro de poesia, “Ocidente rodeado por guerras aparentemente terminadas e de uma Europa que não vive uma paz, mas uma trégua aterrorizada”, (ANEDDA, 2025, p. 133) como fica indicado na nota final.
“Vedo dal buio / come dal più radioso dei balconi” (ANEDDA, 2025, p.8) são os dois primeiros versos desse livro que já imprimem um determinado tom, a relação entre luz e breu já presente em outros textos, inclusive no ensaio La luce delle cose. Immagini e parole nella notte. Todo o livro é construído sob o signo de “una terra lentissima – prometida” (ANEDDA, 2025, p. 9), que adentra na catástrofe humana e da história e adentra ainda na esfera íntima entre mãe e filha, como se lê no poema dedicado a Sofia. A fala endereçada à filha não traz nenhum tipo de promessa, só a dimensão mais humana do humano, o virar poeira de todo e qualquer sujeito, como os moldes de vulcão curvos em Pompeia. O intervalo entre luz e breu não deixa de ser o intervalo entre vida e morte, entre o corpo e o fóssil ou, se quisermos, o pó.
Oltre il secolo
nelle sere a venire quando né tu né io ci saremo
quando gli anni saranno rami
per spingere qualcosa senza meta
nelle sere in cui altri
si guarderanno come oggi
nel sonno – nel buio
come calchi di vulcano curvi nella cenere bianca.
*
Além do século
nas noites por vir quando você e eu não existiremos mais
quando os anos serão galhos
pra empurrar alguma coisa sem meta
nas noites em que outros
hão de se olhar como hoje
no sono – no breu
como moldes de vulcão curvos na cinza branca.
(ANEDDA, 2025, pp. 54-55)
⠀⠀⠀Na medida em que vamos lendo os versos, o endereçamento à filha parece se alargar, pois reconhecemos neste processo um além-futuro que cabe também a nós mesmos. Nesse fragmento, mesmo trabalhando com versos livres, porque o próprio gesto de escrita se torna uma possibilidade, percebe-se como o segundo verso em português é muito mais longo. O que por um lado poderia constituir uma infração se pensarmos o verso em italiano, contudo, não se poderia abrir mão na tradução do uso do “você” e do verbo “existir” conjugado na primeira pessoa do plural. É claro que aqui há uma escolha que passa pelo corpo-ângulo do tradutor. Há um furo no tempo, no “além do século”, que marca o futuro, quando mãe e filha passarão a ter outra existência diferente daquela do momento da enunciação – quando ainda estão vivas e desempenham esta relação que perpassa por uma intimidade impressa entre “você e eu”. Visto que estamos vendo este fragmento, gostaria de assinalar outro detalhe: a opção pelo “pra”, num verso mais abaixo, que pode ser bem mais coloquial do que a preposição “para”. É verdade que o registro linguístico usado por Antonella Anedda pode sofrer variações, às vezes com traços mais literários, outra vezes mais coloquial, mas sua linguagem poética parece operar a partir de uma “linguagem simples”. E essa marca presente no texto em italiano fica registrada na escolha do termo “pra” inserido dentro do verso por excelência da tradição que é o hendecassílabo, ou o decassílabo para a poesia escrita em língua portuguesa. E por qual motivo esse verso teria um peso se o universo poético que se apresenta não é o da forma fechada? É por meio deste verso tão paradigmático e com tantas regras que é trazida a ideia de “empurrar alguma coisa sem meta”. Se olharmos com um pouco mais de atenção e escutarmos o verso decassílabo traduzido, poderemos perceber na aparente traduzibilidade o caráter intraduzível do verso italiano de Anedda. Falando de tradução de poesia, Andrea Zanzotto, poeta lido por Anedda, afirma que o problema da tradução está amalgamado ao problema do que é poesia: “poesia é uma língua, é um modo de ser”. Se tomarmos esta definição zanzottiana, podemos dizer que a voz da escrita poética é um modo de ser e é exatamente por esta voz que se dá a ver que ela é intraduzível, por encenar o espaço de uma singularidade.
⠀⠀⠀O que está em jogo numa tradução, então, é essa “economia pulsional”, um jeito singular de lidar com aquilo que é da esfera do comum, que forma comunidade, mas que é também portador da diferença nessa partilha. Nesta perspectiva, o espaço da tradução só pode se apresentar como espaço onde acontecem as tensões e, ao mesmo tempo, como zona de acolhimento do outro (CARDOZO, 2013); por isso um texto traduzido, sendo abertura e hospitalidade, só pode se apresentar como sendo outro (diversidade e não assimilação). Uma possibilidade de vida, uma inscrição – aqui também está o corte e o contato – num espaço entre línguas, que não deixa de produzir escutas e reescritas; em outras palavras, uma invenção fruto do contato e da contaminação, de uma relação singular cuja trama não deixa de ser composta por vacilos e hesitações.
⠀⠀⠀Antonella Anedda, neste livro, que é um marco para o panorama da poesia italiana, coloca-se à escuta de outras vozes, está muito distante de uma esfera narcísica e, por isso, a própria língua é uma das protagonistas destes versos: “volevo che una lingua anonima / – la mia – / parlasse di morti anonime” (“queria que uma língua anônima / – a minha – / falasse de muitas mortes anônimas”); “Forse l’anima non existe ma esistono i suoi luoghi [...] / una lingua capace di dire ciò che preme” (“Talvez a a alma não exista mas existem os seus lugares [...] / uma língua capaz de dizer o que urge” ANEDDA, 2025, p. 56). É a própria poeta a expor os embates travados com a própria língua que apresenta seus limites, até que num poema dedicado a Franco Scataglini, poeta dialetal, ela oferece em um verso uma possível definição de língua: “Chiamo lingua questo destino della forma” (Chamo língua este destino da forma” ANEDDA, 2025, p. 59). A língua não é forma-fôrma, mas está na hiância pontuada pelo “destino da forma”, um devir-forma, devir-língua, que não deixa de ecoar o embate assinalado por Roland Barthes quando aponta para o fascismo da língua. Na verdade, se há uma forma, ela não está já dada, não é algo que se tem a priori, ela está inscrita num devir-forma, que talvez pudesse ecoar nas “raízes aéreas” de Barbara Cassin. E é pelas questões trazidas até aqui que concordo com a posição de Maurício Cardozo, quando chama a atenção para o fato de o objeto da tradução (um poema, um romance, um conto...) não ser um simples objeto, mas ser sobretudo um “corpo vivo”: “a máquina da criação não pode ser simplesmente desmontada e remontada (...), dado que isso colocaria em risco a própria condição desse objeto como forma de vida – como poesia” (CARDOZO, 2021, p. 40).
⠀⠀⠀Uma imagem para esta máquina da criação pode ser a de um tecido bordado, trama cheia de furos e nós, linha que passa e que sai pelo outro lado, entrelaça e vai dando formas. Tecido, bordado, linha e agulha desmontados não ‘traduzem’ o tecido bordado, a parte não vale pelo todo e nem é depois possível refazê-lo, como as tesselas de um mosaico. E é esse jogo que Anedda propõe ao leitor-tradutor em outro poema. É um poema que na escuta em italiano tem uma maquinária singular, pois remete diretamente a outro texto Traducendo Brecht, poema de Franco Fortini, publicado no livro Una volta per sempre (1959). Se o texto de Fortini começava e terminava com os versos “Scrivi mi dico [...] / La poesia / non muta nulla. Nulla è sicuro, ma scrivi” (“Escreva digo pra mim [...] / A poesia não muda nada. Nada está seguro, mas escreva” ANEDDA, 2025, pp. 50-51), o poema de Anedda é:
Se ho scritto è per pensiero
perché ero in pensiero per la vita
per gli esseri felici
stretti nell’ombra della sera
per la sera che di colpo crollava sulle nuche.
Scrivevo per la pietà del buio
per ogni creatura che indietreggia
con la schiena premuta a una ringhiera
per l’attesa marina – senza grido – infinita.
Scrivi, dico a me stessa
e scrivo io per avanzare più sola nell’enigma
perché gli occhi mi allarmano
e mio è il silenzio dei passi, mia la luce deserta
– da brughiera –
sulla terra del viale.
Scrivi perché nulla è difeso e la parola bosco
trema più fragile del bosco, senza rami né uccelli
perché solo il coraggio può scavare
in alto la pazienza
fino a togliere peso
al peso nero del prato.
*
Se escrevi é por apreensão
porque estava apreensiva pela vida
pelos seres felizes
apertados na sombra da noite
pela noite que de chofre caía nas nucas.
Escrevia pela piedade do breu
por toda criatura que recua
com as costas contra um parapeito
pela espera marinha – sem grito – infinita.
Escreva, digo a mim mesma
e eu escrevo para avançar mais sozinha no enigma
porque os olhos me alertam
e meu é o silêncio dos passos, minha a luz deserta
– de charneca –
na terra da avenida.
Escreva porque nada está defendido e a palavra bosque
treme mais frágil que o bosque, sem galhos nem pássaros
porque só a coragem pode escavar
no alto a paciência
até tirar o peso
do peso negro do prado.
⠀⠀⠀Trata-se de um diálogo consigo mesma. Há algo que impele a escrita. Todo o texto é construído a partir de repetições que vão se justapondo. A relação com Fortini, de algum modo continua, mas a escuta dessa relação fica muito mais nebulosa e de difícil acesso porque o tecido é outro. Neste momento gostaria de propor a análise da tradução dos dois primeiros versos, para vermos como o “corpo vivo” se expõe na tradução. A palavra “pensiero” presente nos dois versos é central na relação com o ato de escrita, é por esse estado, por saber que nada está defendido ou seguro que a escrita se apresenta como demanda. Como traduzir esses dois versos? Uma opção inicial poderia ser “Se escrevi foi por pensamento / porque estava pensando na vida”, mas esta escola pela manutenção da palavra pensamento, além de soar estranha, tem como consequência uma diminuição da carga dramática neste início e no decorrer da enumeração/acumulação que acontece a partir do terceiro verso na primeira estrofe; ou seja, por todos os elementos que são introduzidos pela preposição por: “pela vida”, “pelos seres felizes”, “pela noite”...
A tradução poética assume, assim, a forma de uma operação de escuta do outro, de certa forma catastrófica, que desarticula referências e escava em sua intimidade uma sobrevivência no ponto em que tenta devolver o que não pode ser devolvido.
Quando traduzo um poema
olho o alheio
o acolho
falho numa linguagem
talvez minha
mas
já outra
ANEDDA, Antonella. Noites de paz ocidental. Trad.Patricia Peterle. Rio de Janeiro: 7Letras, 2025.
CARDOZO, Maurício. Escuta e responsabilidade na relação com o outro em tradução. outra travessia, n. 15, 2013, p. 16-17.
CARDOZO, Maurício Mendonça. Traduzir, remontar: antologia e a invenção do objeto traduzido. Cadernos de Tradução, v. 41, n. 3, 2021, p. 40.
ANEDDA, Antonella. Noites de paz ocidental.Translation from Patricia Peterle; Andrea Santurbano. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras, 2025.
